quinta-feira, 26 de setembro de 2013

r.e.t.e.s.i.a.


A palavra me corroeu a boca,

Sedenta e faminta.

A palavra me provocou quando disse seu nome.

“Qual é a tua?”

E eu disse: eu não tenho.

Por que perguntas, eu disse.

Ela emudeceu.

Esqueci que ela pode dizer silêncio.

A palavra me enfrentou e levou a melhor.

Virou as costas pra mim, orgulhosa.

Riu da minha cara e desdenhou dos meus dedos e de minha boca marcada...

Palavra.

Pau na palavra!

Nada.

Brincou comigo e consigo, e ela pode...

Mas não consigo nem que se fosse possível

Dizer o que ela me disse quando tentei dizer.

Eterna amiga inimiga...

Eterna.

Interna.

Silêncio!


Simples palavra.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Fenomenologia capivaracional dos espíritos refletidos – Parte II


Quando o gigante é colocado em seus aposentos confortáveis, o sono chega logo. Acontece que o lugar onde foi delicadamente posto não lhe permite o sono: tudo é muito claro, e os ruídos dos vizinhos... Eles não perdoam...
Além dos ruídos e da claridade, o gigante sente uma necessidade enorme de se manter acordado. E esse aspecto é muito interessante! O gigante não compreende por que o animal-homem não precisa “produzir necessidade de vigília”. O gigante – enquanto retoca a maquiagem – não entende por que o animal-homem usa de meios tão cruéis para desafiar qualquer tentativa de espelho... O gigante não consegue pensar, de maneira alguma, por que o animal-homem prefere atuar como animal furioso (como lhe é natural e necessário) em vez de desfilar e cantarolar harmoniosamente (refletindo bondade e honestidade) pelas belas ruas da cidade – “que estão horríveis!”.
Necessidade de se manter acordado...  Necessidade de vigília... Por incrível que possa parecer, o estado de vigília, de percepção, não é no sentido capivaracional nada de consciente. No âmbito dos reflexos de bondade, honestidade e justiça, os espíritos capivaracionais atuam de um modo peculiar. Como seu estado de vigília é na verdade uma “necessidade de vigília”, o estar acordado é sempre uma tortura, um incômodo: na verdade é uma falsa vigília. O movimento que idealiza é em si uma realidade: para o gigante, desfilar é sempre uma necessidade para que o movimento dialético capivaracional chegue a um nível tal que não precise mais de “necessidade de”. É bem certo que a representação capivaracional nunca tenha se aproximado de nenhuma vertente científica, seja do ponto de vista biológico, seja sociológico ou antropológico... Em seu estado de necessidade de vigília o gigante não cogita, sequer, que suas práticas são concretizações do âmbito científico – ironicamente...
A fenomenologia capivaracional também tem seus desdobramentos dessabidos...  Em termos fenomenológicos-capivaracionais, nem sempre o processo de ascensão do espírito capivaracional pode ser percebido, mesmo que efetivamente esteja acontecendo no plano do espelho. É por isso que as capivaras atuantes nem sempre sabem que pertencem a um movimento, mesmo que tentem negar todas as formas de “movimento”, “partido” ou “despartido”. Consequentemente, não só a necessidade de vigília vem à tona como um fato, como também [vem à tona como um fato] a contradição existente entre os espíritos refletidos que em momento algum exercem a capacidade de reflexão.
Não conseguindo dormir e cansado de mudar o corte de cabelo e a cor das unhas, o gigante começa a ganhar fama por sua característica peculiar tripartite: Bondade; Honestidade; Justiça. Ele está ganhando muitos microfones com essas três palavrinhas mágicas...
Esses dias ele subiu ao palco. Sim! Subiu ao palco. Neste dia estava com a bandeira verde e amarela ao avesso, dizia que era para expressar o ódio que estava sentindo “com toda essa desonestidade e injustiça que paira nessa nação”. Segurando o microfone levemente, com pose e jeito que só ele tem, proferiu em tom ameno para não desafinar, logo depois de limpar levemente a garganta, com um ruído quase inaudível:

Nossa democracia está se libertando de todas as amarras. Mas ainda estamos muito distantes de onde precisamos chegar. Temos que ter certeza de que a Ficha Limpa vai se enraizar em nossa cultura política. Temos que nos livrar de políticos corruptos em todo e qualquer cargo. Precisamos escancarar as portas de todas as esferas do governo para que a democracia não fique escondida do cidadão.

Nesse momento, com uma das mãos na cintura e uma perna em descanso, o gigante fazia leves movimentos com o microfone na outra mão, como se tivesse brincando com o objeto reprodutor de som:

Nossos oponentes têm muito dinheiro, são poderosos e até mesmo corruptos. Para vencê-los precisamos nos unir, e obter milhares de pequenas doações de cada um de nós para construir um movimento maior, mais forte e inteligente. 

Aplausos foram ouvidos; abraços misericordiosos foram distribuídos; sorrisos foram trocados ao mesmo tempo em que os dedos apontavam para o gigante: A cara da nação.
 O gigante está muito ansioso. A necessidade de vigília cria no espírito uma euforiazinha. Nesta euforiazinha, cinco elementos constituem a “mentalidade do gigante”: i) democracia e libertação; ii) enraizamento da honestidade; iii) isolamento da injustiça e da corrupção; iv) união para o bem e v) volume, força e inteligência.
Tais elementos consolidam a fórmula-chão do gigante, mesmo que ele ainda não saiba que pisa em terra firme. Os cientistas da sociedade cuidarão de ora separar, ora sincronizar cada um destes em prol do melhor argumento, o que justificará, além dos próprios cinco elementos, a grandeza e a necessidade de um gigante alegre em nossos-dias-atuais. Os passos longos já foram dados, cabe a nós destrinchar cada conceito minúsculo que fica entre cada pegada, afinal, para quê o animal-homem serviria senão para a total vigilância dos passos largos e incalculados?

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Prefácio ao Homem do Futuro

Brancos, negros, raças, não existem na natureza, como montanhas, penhascos, lagos e rios; denominações raciais são invenções políticas. Assim disse Demetrio Magnoli, O sociólogo. Quem disse que cientistas também não brincam com a linguagem? Assim eu disse.

Um tal Fernando, tal pessoa, disse uma vez que “Viver não é necessário, é necessário criar”.O contexto de Fernando fez a sua pessoa, e a sua criação interpretou o mundo. Existe ordem nestas palavras ou as ações é que organizam praticamente a sua criação?
Este é um discurso morto, deitado e calado em palavras escritas... Mas o que é o mundo tecnológico senão o-mundo-amontoado-de-significados?
Somos poetas e filósofos, cientistas e religiosos; gravando nas pedras, nas telas ou nos corações as mensagens da vida. Que mensagens são essas? Qual a sua importância?
Mimeses históricas que se lançam sobre nós... Ou seria o contrário? Nós lançamos as eficácias da História?
A capacidade do mundo se chama tecnologia, e a mente do homem ainda não sabe o que é. Quem é o mundo, o homem? Somos cérebros on-line, imersos na informação dos outros e do tempo. Vivemos o tempo dos outros em tempo real. Nada mais “poético” que palavras sem sentido... “Vivemos o tempo dos outros em tempo real”. E se faz verdade.
A divindade da informação tem dois lados: o útil e o inútil. Ora ateus, ora crentes; assim estamos diante do nosso produto: “Que assim seja ou que assim não seja”...
 Somos produtos de nós mesmos? Somos palavras de nós mesmos ou somos simplesmente “nós” atados? Nesta constante busca da vida é possível ver algum tom de “eu”? Como consigo comprá-lo?
O poder da busca e da eficácia nos direciona ao desconhecido à medida que queremos conhecer mais e mais. Mas, o quê? “Prá onde vamos?”, perguntam filósofos, cientistas, religiosos e crianças, enquanto nós perguntamos, “por que deveríamos ir?”...
Perguntam aos oráculos, sejam eles quais forem, sobre o tal destino; sobre as nossas necessidades; sobre as nossas intenções: o que querem os homens se o que almejam em essência não está ao seu alcance? O tempo real parece não ser tão real assim...
Que problema queremos resolver além da necessidade inescrupulosa de criar problemas? Buscamos uma eterna busca, ironicamente, ou seria este um discurso daquele que assiste do camarote da vida, sob os lençóis limpos de um quarto privilegiado as forças opostas do mundo?
Nossos excessos de estímulo estão cada vez mais aflorados... Nossa atenção cada vez mais dispersa. Nós não conseguimos dizer sentimentos e ao mesmo tempo só conseguimos dizer sentimentos... O que é este homem atual? Ainda homem? Por que homem?
A informação de nós mesmos não corre mais a cavalo, pelas estradas cruas e nuas, pelas guerras sujas e descaradas; voa por cliques e por cliques nos transforma. O conhecimento do mundo não está mais n’A maior biblioteca do mundo, que pôde ser destruída... Evoluímos! Não destruímos mais como antes, aprendemos a destruir de outros modos, sem prejuízos físicos...
Podemos ainda pensar o futuro sabendo que o próprio futuro já está atrasado? Aliás, aquilo que estava à procura já encontrei; aquele que procurava já achei, já enviei minhas saudades e já procuro por querer distância. Estamos a um clique do futuro, que ironicamente já está em nós, é parte de nós...
O futuro não tem mais corpo, e por que deveria ter? A vida é regida pelas possibilidades de coisas na alma, como dizem. E a alma não é mais “a realização dos corpos, da matéria”. Em outros sentimentos, “o corpo não mais possibilita a alma”, porque o corpo está entranhado na rede, na rede que representa os corpos, mas que não os responsabiliza pela sua realidade.
Muitas escolhas formam a escolha. Regra básica que aprendemos a nos condicionar... O mais buscado é o melhor; o menos acessado é o pior; o mais rápido é o mais eficaz. A mimese na história tem suas variações... Desmedidas variações... Poderíamos perguntar pelo valor da informação ou é ela quem pergunta sobre o nosso atual valor de mostrar informação?
Fim de texto, fim de papo, um rastro. Estas palavras já fazem parte do passado.

domingo, 18 de agosto de 2013

Homem do Futuro: entre aspas e asco


Ele queria dizer que o mundo está burro, mas dizer isto num ambiente brilhante e progressista não soaria tão bem. Queria dizer também que filósofos, os “muito adiantados do nosso tempo”, quer dizer, excepcionais e observadores ao último perdem lugar e a pose diante dos que, informalmente, sabem melhor fazer e discorrer. Ele ainda continua a querer dizer que o mundo está burro, porque, claramente, ela, a burrice, não nos deixa ver os loucos inteligentes dizerem o que há de mais novo! "O sábio é ainda aquele o qual ninguém consegue entender; aquele o qual todos admiram ao ouvi-lo, mesmo sem uma única gota de desconfiança e receio: o filósofo se tornou um herói dos cinemas, e o que importa, como todo produto, é o final do filme – seguido da repercussão".
“O mundo está muito burro”. Da filosofia ao direito, sem hierarquia ele diz isto, porque não existe mais a tal “hierarquia”. O povo não sabe mais que é ser povo; o cristão não sabe mais o que é ser cristão; o artista não sabe mais o que é artista! “O mundo, hoje, é uma liberdade colorida e, de tão charmosa e reluzente, não diz nada quando quer dizer muito, não faz rir quando em gargalhadas se mostra, não surpreende quando em susto se coloca”. Assim ele disse, com todos os exageros possíveis...
O mundo vê a notícia pelas telas, pelos pixels, pelos nichos. O mundo, que ora fragmentado, ora unido de nada parece oferecer, a não ser ora ignorância em fragmentos, ora ignorância em conjunto. “Que pena nos daria se pudéssemos pensar numa bobeira dessas, não?” Se perguntou triste...
"Dizer que o mundo está burro é burrice! Mas dizer que demos grandes passos para a discussão ou relação homem-natureza, isto sim é inteligente! Isto sim é dizer Sim à Vida! O mundo se reúne num Congresso Da Salvação da Natureza e, que lindo... Teremos boas notícias amanhã nos jornais; teremos boas frases amanhã pela internet afora; teremos suplícios realizados, porque acreditamos neles! 'Amanhã o mundo respirará melhor'. Palmas...", negativou em gestos... Parece que ele queria dizer um pouco mais além de afirmar que o mundo está burro; queria dizer que ele nunca esteve tão bestial quanto hoje! Impossível? "Burrice é uma coisa, bestialidade é outra! Não confunda nossos produtos!" Gargalhou... 
O mundo talvez nunca riu tanto de piadas inconsequentes que graça alguma têm; o mundo nunca sorriu tanto quando a desgraça ou bate à sua porta ou deita já a sua cama; o mundo nunca aceitou tanto do “mais do mesmo” quanto o que hoje reina. O mundo está pior... “E o mundo é o modo como os homens se organizam nele...”. Não sabemos se ele existe (de fato...), mas o que sai de sua possibilidade irrita qualquer ouvido... Ele parece existir enquanto um possível...
“O mundo, então, está burro porque os homens nunca se mostraram tão deficitários!” Os homens, talvez, nunca se mostraram tão adversos aos comportamentos humanos, aos moldes do humano, ao conceito e ao aspecto do animal homem! Prefere ele, hoje, virar algo que ainda não sabe o que é, mas que, em si, já é adjetivado inteligente e novo desde o momento crucial: este é o “homem do futuro”! E não é que ele tem razão quando diz isso...
O homem do futuro, isto é, o hospedeiro da burrice, está pronto para ser vendido pelas vitrines polidas e sedutoras... Aliás, ele custa caro! Nunca a burrice valeu tanto no mundo como vale hoje. “Para se ter ideia, paga-se milhões aos cheios de nada e nada aos engenheiros do espírito do mundo!” O mundo está de mãos na cabeça, girando em sua poltrona nova (e preta), gritando, sorrindo, chorando: tudo ao mesmo tempo! “As cadeiras giratórias pretas estão em promoção, corram! É possível entrar para a história por cento e trinta e nove reais e noventa”. Suspirou e abaixou a cabeça em tom de quase-choro-e-quase-sorriso...
"Sabemos uns dias antes da chuva que vai chover; sabemos alguns dias antes da doença que ela aparecerá; sabemos uns dias antes da rua que perderemos nosso emprego; sabemos antecipadamente o nível, o nome, e os efeitos de um desastre natural; sabemos desde sempre a cor dos olhos de Deus, a língua que mais gosta de falar, o lugar onde mais gosta de ser tocado, o modo como gosta de ser lembrado; sabemos muito sobre a Terra, sobre o mar, sobre as ferramentas que neles usamos, sabemos de cabo a rabo, dóceis e tiranos, ferozes e paisanas o movimento do mundo e o fundo..."
"Sabemos tanto que ofenderia aqueles que lidam com as “microscopisses do mundo” se não citássemos as miudezas que nunca antes foram tão bem percebidas e descobertas; Aliás, éramos mais inteligentes quando conhecíamos como menor parte do mundo o pó da terra?" Denunciou...
"Nós gostamos muito de ser o “homem do futuro”, isto é o que importa! Nós gostamos mesmo é de esquecer essas bobeiras que escrevem por aí, como também gostamos de esquecer daqueles que pincham os muros, as caras e a alma; nós gostamos de não saber sobre o gosto; nós acreditamos em não querer saber; nós conhecemos o que nós é útil, seja visível ou não".
"O mundo está burro, podem jogar as pedras. Não ofendendo, claro, aquele nobre animal que sabe bem dosar suas forças numa tarefa que lhe é lançada; não menosprezando aquele robusto animal, não isso! Este, de cabeça baixa e de orelhas grandes como é falado, vai perder o título de inferioridade daqui uns dias, pois já se pode prever isto...".
É bem provável que sejamos este novo título para designar o deficiente, o deficitário, o incapaz, o bestial, o homem do século XXI... Aliás, Homem do Futuro parece ser bem coerente para esta nova espécie de seres – “Sim! Nova espécie!” –, aliás, por dois grandes motivos: porque vende; porque atende. Não pode se perguntar quem rege quem, isto é coisa do passado! Precisamos saber que se trata de dois grandes motivos, só isso interessa...
Homem do futuro é ótimo, mesmo que seja burro; Homem do Futuro é lindo, mesmo que seja ridículo; Homem do Futuro é perfeito, mesmo que seja o mais despreparado e desajustado possível.” Cortemos nossas-vossas-tuas orelhas? Caminhemos [ainda] mais rapidamente? Ou será que deveremos deixar crescer nossas-vossas-tuas unhas e cabelos diante dessa situação?
“Quanta pergunta errada... Nós somos o Homem do Futuro, viva!” Suspirou pela última vez; desligou a televisão; fechou os livros e os ouvidos. Ele ainda morrerá por não conseguir adaptar-se a essa nova espécie, pois assim caminhamos – “e também rastejamos...” finalizou.


domingo, 4 de agosto de 2013

Fenomenologia Capivaracional dos Espíritos Refletidos - Parte I


Do dia em que as capivaras ficaram famosas não se pensa outra coisa que não seja desfilar. Bandeira nas costas, e na cabeça nada. Quem não se lembra daquela dos anos oitenta... “Com muita coisa na cabeça, mas no bolso nada...”. Engraçado é que hoje o oposto é que canta o anúncio de refrigerante. Que inversão! Mesmo que muita coisa na cabeça não seja exatamente muita coisa na cabeça as capivaras hoje tem dinheiro no bolso; cinco funcionários para bater o ponto amanhã na loja e: Nada na cabeça, muito menos nada na cabeça...
Por que essas capivaras conseguiram as câmeras e nós não? Por que “las vasijas cantam y gritan los hermanos” e nós somos “a minoria arruaceira”? Por que só nós obedecemos o cercadinho, o chiqueirinho que os capachos do Estado realizam? Quanta ofensa! Todos nós sabemos que o Estado é expressão máxima da liberdade...
Não tivemos tempo para pintar a cara de amarelinho, nem de verdinho; não pudemos sair mais cedo do trabalho para comprar uma bandeira de qualidade, que não causasse alergia em nossas costas bronzeadas e em nossas pernas torneadas - e que combinasse com as calças novas! Não conseguimos curtir todos os atos porque tínhamos que acordar cedo, e o carnê chegou aqui em casa, ao contrário do celular cheio de vida e das notícias super rápidas que o pensamento contemporâneo costuma enviar pela internet...
As capivaras tiveram tempo: os pais as deixaram em fila dupla em frente da escola; guardaram o salto no lado do passageiro, colocaram seus tênis confortáveis e foram protestar alguma coisa nas ruas também. Pagaram para um guri cuidar seus carros três quadras abaixo e foram lá cobrar “mais dignidade dos políticos” – as capivaras precisam de cuidados! –, pedir “o fim da corrupção e melhores condições de vida, incluindo melhorias na saúde, educação” e outros elementos que agora compõem o sexto mistério da santa “democratização” do mundo...
As capivaras que conhecem o bom gosto compartilham de bom grado as intenções dos simpatizantes/aspirantes à classe interessante – que, óbvio, não é classe, mas algo como “modo de vida”, “filosofia de vida”, “tendência”, etc. Se pudemos apreender alguma coisa do Movimento Fala Aí! diríamos: a melhor forma de carimbar a ascensão de aspirantes ao modo-interessante-de-vida, aos donos dos saltos é tirando fotos juntinhos, sem bandeiras-outras e sem partidos! As fotos dizem por eles  quer dizer, pelo movimento – como uma síntese: “nós somos a nova sociedade”. Antigamente haveria aplausos, agora são cliques e mais cliques, ecoando na alma virtual tal slogan...
O suor de alguns escorria pelos brincos de dezoito e relógios Tissot. O milagre da fusão dos espíritos acontece em praça pública. Que milagre que nada, processo dialético! E eu que até jurava que aquilo tudo... 
Quando se vê a massa nas ruas é de arrepiar, não se tem dúvida. Mas quando se atenta os olhos para mais perto e o arrepio se transforma em um sentimento-de-não-saber o susto se desmancha; o suor vira água parada; a massa para de crescer... O vocabulário das capivaras tem o mesmo som de um bocejo:  faz “aahhhhh”, e só. Eu jurava que quando ouvia alguém falar que um gigante acordava era só uma metáfora... Mas não! O tal gigante estava mesmo dormindo, não se sabe em qual grau  de sono e quando despertou; nem se gigante sabia que era.
Imaginem só um gigante de mãos dadas com os policiais, numa quase ciranda de roda (desculpem-me, num movimento de adaptação do espírito) com a cara toda pintada, com adornos para todo lado, sorrindo e falando ao celular com a mamãe: “Mamãe! Vem prá cá... Tratam a gente super bem! Você estava certa mamãe, com respeito a gente consegue tudo!”, e dobrava-se o celular estampado com uma bandeira do Reino Unido.
Lembro também – agora que estamos mais perto do hoje – que algumas bandeiras foram compradas bem baratinho: alguns bolivianos desempregados tanto aqui como lá se saíram muito bem. “Com o dinheiro das bandeiras brasileiras dá até prá comprar bandeiras bolivianas e sair pras ruas também!”, disseram eles, seriamente! Nesse ciclo interessante são os argentinos os mais audaciosos: para acabar com esse movimento bandeirístico-passeático eles batem panelas! As capivaras são muito criativas... Só depende dos meios de elevação e das próprias representações que O Vale de Lágrimas produz... 
E lá, como se tem mais protestos que Jornal Nacional e menos presidente como sacerdote; mais militantes do que mílites, as panelas são recicladas nos próprios movimentos, passadas de pais para filhos, ao contrário das garrafinhas milagrosas e das revistas das missões, que por aqui são despejadas, ora gratuita, ora violentamente comercializáveis. Lá, talvez, a dialética esteja em nível avançado, até porque já é sustentável! Dialética Sustentável: unindo o útil ao conservável. E batem panelas...
Ora, quando os espíritos alcançam um espelho que nunca haviam cogitado que poderiam nele se ver, eles se machucam de tanto prazer. Esses espíritos capivaracionais, quando formam uma imagem para si disso que em si se mostra, gritam agônica e arritmadamente: a surpresa de ser aquilo que o espelho era em  si produz neles uma “vontade de rua”, uma “energia da voz única”, um “sentimento de crescimento e prosperidade”. Que tal chamar esse movimento de Fenomenologia capivaracional dos espíritos refletidos?
É certo que nós somos um país de grandes iniciativas, a começar com a privada! Uma nação onde o espírito presente na sociedade civil realiza muito bem o direito natural. Nós éramos um país em pleno desenvolvimento, cheio de vontade e planejamento para um fortalecimento político-econômico... Até que o gigante, todo enfeitado, começou a bambolear pelas ruas, fazendo gracinha. Tinha ele que continuar a dormir ou era mesmo hora de acordar? Perguntaram os inteligentes. Será que ele pode dormir de novo? Perguntam os curiosos... O último desdobramento aponta para esta: "Com ou sem bandeiras desfilantes, é possível frear o meta-movimento que antecede às capivaras, isto é, cobrir o espelho?" Enfim, as energias de um gigante precisam ser repostas com comidas respeitáveis, bons cremes e sucos naturais! “Da pele até a alma nós pedimos qualidade!”, disse a representação do gigante...
Que gigante educado nós somos, aliás! Lembro como se fosse agora que quando ele dançava nas ruas e tremia muito, colocava as mãos na boca e, tímido, pedia desculpas. Dizia que ia dançar sem barulho, para não incomodar os vizinhos... E com todos esses dados e esses doces dá até para pensar  se com o tempo livre que as capivaras tem para pensar sobre qualquer coisa – nos intervalos do pilates ou no movimento de negação-da-aula-de-francês-na-quarta-feira – elas não queriam inovar criando uma história de um gigante enfeitado e educado que fosse pras ruas dançar e fazer bonito.  É possível desconfiar que essa história venha ganhar as prateleiras com um livro de capa verde e amarela; bandeiras prá cima; testas pintadas; título em caixa alta e muito respeito e coragem no Prefácio, contraditoriamente. Mas todos nós sabemos que o movimento do espírito é por si mesmo contraditório, magnífico...
Bom, é preferível não mais falar das capivaras, do gigante e de todas as categorias da Fenomenologia, visto o sentimento de antítese que paira entre (alguns de) nós. Dizem que nem todas as dissertações são descritivas. Diz-se o mesmo de alguns movimentos fenomenológicos! Afinal, o que interessa é que já se divertiram e até ganharam uma “base teórica” – o que as irritaria! – só para garantir o seu feitio no período das festas junina e julhina, coincidentemente.
Mas enquanto o gigante desfaz a maquiagem e põe seu pijaminha verde e amarelo (ele adorou essa roupa!) agora começa timidamente o movimento consciente do animal-homem: melhor tímido e com certo sentimento de vingança que espalhafatosamente fazer do processo um espetáculo de circo! 
Preocupado com suas contas e com a carga horária irracional à qual está submetido, o animal-homem começa a usar seu tempo não para criar “revolução semântica” nem figurino “mais atual”; não para levantar ninguém adormecido ou bandeira-única-que-não-é-bandeira. Começa a usar seu tempo, que sabe e sente que nem é seu, para fazer política anti-ciranda
Obrigado animal-homem por colocar o gigante para dormir, mesmo que o sono demore a vir. Afinal, um gigante extenuado pode causar um acidente horrível se cair por cima das pessoas. Parece que já era hora de cobrir esse espelho ilusório. Quando cobrir o tal espelho, lembre de cuidar do menino que cuidou os carros! Ele pode ser pisoteado pelo gigante enfeitado, que, aliás, só costuma olhar  para suas próprias unhas e adornos, além, é claro, de bem cuidar sua bandeira nova para que não venha desfiar ou perder a cor. Aliás, usem-na de cobertor, os dias frios são muito mais violentos que antigamente...

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Quiproquó


Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, disse:
Não disse! Por que deveria dizer algo quando se verte ao céu e para e examina e olha de um canto a outro? Os textos, os discursos bonitos e as emoções vendáveis têm a mania de começar muito mal!
(...)
Ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, fumou um cigarro e cruzou os braços, deveria estar pensando algo do tipo:
Não estava pensando em nada! Por que ele deveria estar pensando algo quando se verte ao céu e para e examina e olha de um canto a outro?

“É que braços cruzados, cigarro e o olhar que se verte pr’o céu geralmente quer expressar pensamento, não é?”.

Quem disse, garoto?

“Não sei quem disse... É que isso é quase como uma regra... O senhor não acha?”

Então façamos um exercício:
Agora você está em frente a um caixão vermelho, com flores roxas e amarelas permeando aquele círculo triste suspenso sobre o tal caixão. Você era o sujeito que se vertia ao céu, parava, examinava e olhava de um canto a outro, quando vem a ser, agora, esse sujeito à frente do caixão. O que diz? Deve estar pensando algo do tipo?

“Eu não sei o que dizer”.
“Por que o caixão?”
“Aliás, por que o caixão vermelho?”.
“Por que diabos o caixão vermelho e um círculo triste suspenso sobre o tal caixão?”.

Deixe eu começar o meu texto de novo...
Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, não disse nada. Mas algo lhe foi dito sem que percebesse.

“Está ótimo!”
“Se não queria dizer nada, então, disse tudo! Você é bom nisso, hein?”

Garoto... És muito ansioso... Tens de começar a apreciar o silêncio; tagarelar é um risco, e todo risco é assumido por aquele que se atropela.

“O senhor fala tão bem! Como não consegue começar um texto?”

Garoto... Não ouviu nenhuma palavra que disse, não? Um texto, um discurso, uma ideia nunca começam por alguém, por um indivíduo, por um. Um texto se começa por uma personagem, uma personagem incognoscível e sabida de si.

“Não sei se entendo...”

Não consegui começar o texto porque ainda não me veio tal personagem!

“Ahhh... Não acredito! Esta é a essência da inspiração???”.

(...)

Ele não se verteu ao céu, não parou, não examinou nada, nem mesmo olhou de um canto a outro. Ele não sabia que sentimento tinha sido aquele. A escuridão talvez o ocorreu no espírito. Sentia-se racionalmente como impensado; mergulhado nas suas honras particulares por um espaço de tempo que não sabia decifrar.

“Agora sim, hein! Agora começou! Perfeito!”
“Como é a personagem, ela veio pr’o senhor?”

Garoto, por que não levantou a tampa do caixão quando estava de frente a ele?

(...)

“Por que não pensei isso antes...”

Porque não pensou em nada! Estava vertido ao céu, parado, examinando e olhando de um canto a outro!

“Mas o senhor me disse que não é obrigatório dizer algo, nem mesmo pensar em algo!”
“E se eu levantasse a tampa o senhor ia mandar eu fechar! Tenho certeza!”

Ahahahaha... Garoto... Não podemos brigar com as coisas formadas da ilusão; elas é que brigam entre si para ganharem o mundo e se confundirem com a realidade. Elas são traiçoeiras, são engenhosas e ao mesmo tempo pusilânimes.
Nos tempos em que o pensamento se verte ao céu, por exemplo, e para, e examina e “olha de um canto a outro” o silêncio ocorre como uma personagem destemida. Incognoscível, mas destemida. Nesses tempos, o pensamento consegue domar as coisas da ilusão, de modo que a escuridão não mais ocorre no espírito, mas na própria ilusão. Cruza os braços e fuma um cigarro, é isso que faz realidade quando essas coisas pedem pra chegar.
De um caixão vermelho emergem então os textos, os círculos de flores roxas e amarelas. A vida é então representada quando se verte ao céu e quando o céu nos olha de um canto a outro. Quando os braços cruzados dizem o que não sabemos dizer, ou quando nós enquanto personagens viemos a nós mesmos como inspiração de si, é aí então que começa...

“Eu acho que já sei o começo do texto do senhor...”

(...)

Se sabe mesmo, então quem é aquele de braços cruzados?

“Ele não existe... Nem o caixão...”
“Nem as flores, nem o céu, nem a personagem, nem nada!”

“Por que me enganou?”
“Quem disse que prá começar texto tem que enganar alguém?”

(...)

“Deixei de acreditar nas palavras daquele senhor que se vertia ao céu, mentiroso! Suas palavras eram carregadas de paradas, exames de um canto a outro, mas todas mentirosas! Coloquei-as dentro do caixão e despedacei todas as flores! Não é possível que alguém não pense em nada quando se verte ao céu! Por que não dizer nada?! Só se for porque é mentira! E se for prá dizer mentira é melhor mesmo cultuar o silêncio! (...) Coisas da ilusão... Escuridão no espírito... E eu achando que ele queria começar um texto! Mentiroso!”
“Vou deixar o senhor em silêncio, talvez consiga alguma ‘inspiração’”

Garoto, algo lhe foi dito sem que percebesse...

“O senhor não disse nada!”.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Qualquer-coisa-além

A consciência dos inocentes é amarela,
É doce, meiga e ao mesmo tempo sem graça.
A consciência dos inocentes é um avesso do nada,
Mas um ser de cara pálida;
Com uma gargalhada disfarçada;
Que produz um arrepio sem causa...
A consciência dos inocentes é uma atividade bárbara
Porque...
Quem acreditaria que ela se tornou o que é
Pela sua baixeza opaca-e-magra-e-alta-e-fraca?
(...)
A consciência dos inocentes não tem cheiro,
A consciência dos inocentes não tem feito,
A consciência dos inocentes não tem jeito.
E tudo o que disséssemos sobre a “consciência dos inocentes”...
Tudo o que quiséssemos transcorrer sobre a “consciência dos inocentes”,
Não seria mais interessante que um simples título,
Que diz qualquer-coisa-além dos que reproduzem
A consciência dos inocentes...


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Os bichos e um homem


(...) Ele disse:  digo a verdade porque detenho o dom das palavras!
E você? Em que acha que sobre mim exerce alguma supremacia? Vocês são bichos, irracionais! Não sabem falar, não sabem criar, não sabem interpretar!

Nesse momento o papagaio Tadeu tentava dizer: “Nãosabemfalar! Nãosabemfalar!”. O eco do bicho alcançava uma volta de olhares, chegando até a casa de João, João de Barro. Este saiu de sua casa, que ainda cheirava a nova, e decidiu ouvir mais atentamente a discussão. E eis que escuta o homem gritando:

– “Vês?! Você não faz outra coisa que repetir, repetir e repetir! Por que acha que sabe alguma coisa? Só os homens sabem! Só os homens pensam! Só os homens conhecem a verdade! Isto é indiscutível, simples bicho!”

João rapidamente voa para perto da casa de Tadeu já com o barro nos pés, pronto para demonstrar certa contradição que acabara de ouvir...
Chega tranquilamente, mas em tom de surpresa. Ouve o tempo, vê a posição das nuvens; sente o vento, a firmeza do tronco e a qualidade de seu material. Decide, no meio da conversa, construir uma nova casa, pois que a sua começara a apresentar algumas imperfeições e sinais de vulnerabilidade às ações do tempo, que começava a soprar contrário.
Acontece que dias antes o tal homem havia usado de sua inteligência precisa para acabar com o problema das folhas que sujavam seu quintal, usando de uma motosserra para derrubar alguns galhos desnecessários.

João, depois de sentir o movimento da natureza, decide a alguns passos dali construir sua nova casa, que agora era observada tanto pelo homem sábio, quanto pelo papagaio Tadeu.
O homem, que acabava de considerar a si mesmo como o único capaz de criar, observava o trabalho de João com alguma antipatia e desprezo.

– “Para não dizer que vocês nada têm, nada sabem, tem lá as regalias do próprio instinto, que, afinal, são o máximo de sua sobrevivência!”

Em tom de ironia, o homem começa a citar os exemplos possíveis de sua imaginação fértil:

“ –Posso medir a quantidade de chuva que cai durante horas! Fazem isto, passarinhos?!
 “– Posso pensar na probabilidade de chover ou não! Fazeis isto, criaturinhas?!”
Tadeu dizia: “Choverounão!
“ – Posso inventar uma teoria que explique por que a verdade é em essência, onde somente os homens mais elevados podem decifrar! Somente os homens mais elevados! Cheios de razão!”

E Tadeu: “Cheiorazão!”                   

Enquanto  o homem proferia suas qualidades em forma de discurso, usando a perfeição da linguagem, conceituando cada detalhe de sua Teoria da Essência da Verdade e usando exemplos cada vez mais eloquentes, os bichos o ouviam e não ouviam, prestavam e não prestavam atenção: Estes animais não conseguiam ouvir nenhuma verdade, isto para eles soava como um canto cheio de acaso, que de nada tocava, nem para conquistar uma parceira, muito menos para manter a dispendiosa harmonia da natureza.
O homem falou por longas horas. Explicava, exemplificava, concluía, recomeçava. Contou a história de sua teoria da Verdade e destacou que, além de só alguns poderem encontrá-la, porque se esconde atrás do aparente, depois de encontrada ela deve ser validada e valorizada para todos!

Tadeu, como se quisesse não deixá-lo sozinho com as palavras, repetiu: “Paratodos! Paratodos!”.

Acreditava ele convencer a si mesmo com sua teoria?

Vendo outros bichos rodeando a cena se empolgava e produzia mais e mais verdade. Aqui já havia passado um tempo necessário para que João assistisse o discurso de camarote, aconchegado em seu novo lar, depois de ter trabalhado como um heroico soldado da natureza. Tadeu  já piscava lentamente, porque o sono já lhe tocava... Os bichos que assistiam ao espetáculo do Homem da Teoria já se guardavam, pois sentiam que aquela música desafinada que cantava seus ouvidos já havia saturado suas intuições, e o tempo formava para chuva.

“– Nem comunicar vocês são capazes!”, repetia o homem em pensamento...

O homem, grande entendedor das palavras e dos discursos, que falava por horas e horas não percebeu que a reunião dos bichos tinha um propósito específico, pois todos estavam debaixo de uma grande árvore volumosa, que ironicamente protegia da chuva somente os animais que falam pouco, os que nada sabem, nada entendem, nada surpreendem.
A chuva tocava as folhas grandes onde Tadeu repousava; a casa de João, já completamente pronta; a cabeça do homem, totalmente descoberta...
Ensopado d’água e de palavras, o homem tenta retornar a sua casa depressa, maldizendo as aves que agora sentiam a chuva da melhor forma possível, em um contato ora conflitivo, ora harmonioso com a pequena mata grandiosa. Não entendia ele, depois de ter total certificação do que dizia, como ainda poderia se perder naquela pequena trilha, que, aliás, fora desenvolvida por ele mesmo.

Ensopado, ofegante em corpo e mente, o homem se dizia: “Tenho certeza que a pedra grande deveria estar aqui, ao lado da árvore fina e sobre o morro de briófitas”... Ironicamente ouvia ele um canto longe, que lembrava periquitos alegres com o banho de chuva. Em sua cabeça lógica, “sons de bichos que de nada se comparam à vida humana”.

A racionalidade do homem foi naquele momento interrompida por um relâmpago forte, que desviou as palavras de sua razão. Virava o pescoço de um lado para outro, como um pedido de saída; se virava para si e não se via; se voltava para cima e também não via nada além de pingos gelados misturados com os clarões...
Estava perdido. O homem, no centro da natureza, não sabia o que fazia. Seus gritos não foram ouvidos, como o canto dos periquitos; suas pernas não alcançaram a saída, como as que ajudaram João na construção do lar; seu pensamento começava a imitar a si mesmo, e já não dizia nada de novo além de “o que faço agora, o que faço agora?”... Talvez lembrasse de Tadeu nesse momento...

Quando só garoava e a noite já tinha chegado, o homem se deitou debaixo de uma enorme seringueira, onde suas raízes salientes lhe serviram de apoio; onde as folhas grandes caídas lhe serviram de colchão: Dormiu como um bicho tranquilo...

Ao nascer do dia é incomodado por ganidos, cantos e sons de vento, nada estranho para a realidade natural. Seu despertar diz: 

“Amanheceu, tenho que sair daqui”, e levanta. Úmido e desacreditado aquele homem tão falante e claro agora é silêncio, agora é palidez e susto quieto.  A natureza lhe tirou, naquelas horas de educação, chuva e palavras os dons de interpretação, fala e de olhar de descaso que só nós tínhamos.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poema para ser lembrado enquanto no mundo houver história


A insaciabilidade nasce na criança, e não morre no velho.
Ela é presente no mais rústico barulho da chuva,
Quanto no mais engenhoso equipamento heudaimônico.
A insaciabilidade vive dos povos mais antigos
Aos povos mais bem vistos:
Nenhum passado sacia mais que um possível futuro.
Ela é no mundo algo de anterior ao mundo;
Ela é o homem antes do homem.
A insaciabilidade diz respeito a uma ordem de tempo doentio:
Doença que não pode, não precisa e não quer ser medicada.
A insaciabilidade produz história e conta a História;
Produz guerra e também paz;
Ela se faz porque, insaciavelmente,
Se deseja aos olhos e às mãos de qualquer um que a faça.
A insaciabilidade é uma desgraça,
Mas também é graça.
A insaciabilidade é ruptura e choro,
Mas também (e além) é continuidade e riso.
A insaciabilidade não deixa de ser poesia por estar à prova,
Não por isso.
Não queixa por ser uma menina de vontades imoderadas,
Sempre nova.
A insaciabilidade diz o que nenhuma outra força tem coragem de dizer:
Que antes, durante ou depois do tempo, é somente seu grito
Que pode silenciar algo no curso do mundo.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Buraco nos Discursos


Daqui de cima dá para ouvir a confusão, onde dois velhos amigos paravam o jogo para atuar em um novo passatempo:

– Veja o de azul, parece poeta, mas rima gestos com ideias! Dizia o senhor Artur.

Lá em baixo a briga palavresca acirrava o diálogo entre os dois pensadores do bairro, o senhor Eliseu e o jovem Carlos. As palavras soavam assim:

“Nós defendemos a supressão de toda forma de poder!”.

Um dos amigos, que guardava as cartas do Buraco e centrava-se na conversa ria muito... Entre os risos ele se incomodava:

– Esse é o poder que vocês exercem no mundo? Perguntava invocando o amigo ao lado, em risos.

Ali de cima eles já haviam guardado o jogo várias vezes. Uma vez numa discussão entre uma questão de um além-do-homem e outras fantasias filosóficas; outra, se não me falha a imaginação, num embate sobre o mal moral e o mal metafísico. De qualquer modo, eles se divertiam muito, aliás, as conversas permitiam tal diversão, e uma pausa no jogo parecia sempre necessária quando um assunto polêmico vinha à tona...

– Veja, Frederico, aquele não é o jovem Carlos, filho do advogado da esquina? Pergunta Artur, enquanto ouvia as palavras e as ironias do jovem:

“Vocês dizem que são contra toda e qualquer forma de poder, mas acabam se esquecendo que não existirá liberdade sem o poder individual de um sobre o outro!”.
“Dizem por todos os cantos: ‘nós defendemos o pensamento livre do indivíduo!’. E enchem a boca ao dizerem também: ‘nós somos os libertários’!”. Quanta bobagem, não percebem que anterior ao indivíduo está presente o meio onde é constituído?

Eliseu não se contenta com as implicações... Aliás, ele nunca se contenta com implicações:

“Você não entende bem, amigo Carlos. O meio, a natureza, que aliás, única acima de nós é quem nos oferece as condições reais de liberdade e progresso. Somos libertários, sim, porque estamos para além dos conceitos prontos que de nada revelam sobre as leis da natureza; pelo contrário, nos invadem e nos corrompe! Somos libertários, sim, porque vivemos pelo livre acordo dos quereres que há de constituir a sociedade futura! Assim como já constituiu muitas!”.

A conversa esquentava e um dos jogadores de cartas já analisava a feição daquele de camisa vermelha, o filho do advogado. Enquanto acendia um cigarro, via o tal Carlos preparando a réplica. E não demorou três segundos para que o tal jovem assim replicasse:

“Sabe por que às vezes fico triste, caro Eliseu? Que vocês, nem sei do que chamo mais, idealizaram a natureza a tal ponto de não perceberem que até mesmo ela pertence a alguém! Vocês dizem lindas palavras sobre a ‘potencialidade do indivíduo’, a ‘capacidade pessoal’ e sobre o ‘sonho de liberdade mundial’. Mas... quem é o indivíduo numa operação de forças conjugadas e precisas? O que significa a ‘capacidade pessoal’ ou a ‘individualidade’ num plano fortemente montado e consolidado que pisoteia qualquer ‘vontade’ ou ‘querer’ pessoal? Responda-me, caro amigo Eliseu, esse ‘sonho de liberdade mundial’ ainda não se compara a um paraíso qualquer que, harmoniosamente, possibilitaria a realização plena da vida entre ‘irmãos’, como nós vimos naquele outro conto de fadas?”.

O senhor Frederico, aquele das cartas e dos risos, cutuca o amigo e desabafa:

– Mas não é o tal Carlos também um idealizador do mundo, Artur? Por que diabos eles estão discutindo?

– O problema é o poder, Frederico... Diz o amigo, balançando a cabeça e desfazendo-se das cinzas do cigarro:

– O modo como eles entendem o poder nunca vai ser conciliável... Não vê o nosso jogo? Um lixeiro e um jogador limpo, uma briga sem fim! E gargalharam os dois...

A liberdade era o tema do jogo de buraco e do bate-boca lá em baixo. Afinal, o poder estava com o de azul ou com o de vermelho? Com o lixeiro ou com o jogador limpo? Isto ainda não se sabe, mas Eliseu já preparava o tão famoso argumento anti-poder:

“Ora, camarada Carlos, vamos encurtar a conversa, porque o caminho para casa nunca é só um caminho... Vocês não querem a tomada de poder e a consolidação de uma sociedade sem classes?”

Carlos levantara a sobrancelha como resposta, num tom sério e afirmativo. Aliás, poucos vizinhos se atentavam aos gestos do jovem Carlos... Eles sempre diziam mais que suas palavras... Contudo, depois da afirmação silenciosa do jovem, assim continuou Eliseu: 

“Então, nós entendemos que tomar o poder significa continuar o ciclo vicioso da ‘autoridade sagrada’, a famosa hierarquia, senhor Carlos! Ora, veja bem, nem mesmo uma ‘conscientização’ está fora desse jogo ingênuo; nem mesmo uma ‘ditadura do sofredor’, que você tanto almeja conseguiria recompor um plano harmônico entre os indivíduos, pois, onde estariam nesse ‘momento’ os outros subjugados? Ah! ‘não existiriam mais!’. Camarada Carlos, sinto dizer, mas, não acha um tanto infantil conceber uma inversão totalizante e depois querer fazer sumir do mapa a própria força da inversão?”

O senhor Artur, agora intrigado, cotovelava o amigo Frederico:

– Não é que o tal Eliseu tem razão naquilo que diz!

Frederico, não muito crente na razão, dava seu palpite, enquanto colocava a mão na testa, como se quisesse tocar a consciência de Artur...

– Artur, velho amigo... Ainda busca razão nos discursos? Ainda acredita que exista uma “racionalidade histórica” e “confortável” para “o homem”? Veja, a conversa vai girar e girar e a vontade ficará em segundo plano; tentarão se justificar pela consciência e, sabe o que acontecerá? Assim como você vive tentando ganhar no Buraco de mim só com jogos limpos e sequências bem pensadas, ficarão eles, mais uma vez, decepcionados por perderem de um lixeiro, astuto e inconveniente! Ahahahaha... Eles deveriam parar de jogar limpo! Isso não dá em nada! Quem disse que o mundo tem alguma razão? Aliás, se alguém o disse, o disse por covardia! E finalizava rindo por dentro...

Artur ficara encurralado. Olhando para seu leque de limpas sequências incompletas ele teve de concordar com Frederico: descobriu porque perdia tanto.

Lá em baixo a conversa dura mais de dois séculos. O filho do advogado se torna o pai da História. O senhor Eliseu ainda busca a tão almejada liberdade irrestrita. Artur e Frederico, tão contrários quanto parecidos no jogo da vida, continuam sentados nos variados bancos da praça. A quem interessa esse jogo? Quem garante o discurso? Quem vai bater?

Metido a pensar naquilo que não vi, quando olhei para baixo de novo só ouvi murmúrios, só vi vultos... Quando olhei para baixo de novo, não ouvi mais nenhuma conversa entre o senhor Artur e seu amigo Frederico. Quando olhei para baixo, Carlos já não era jovem; Eliseu um marco. O jogo já tinha se deixado, assim como o sonho da liberdade e o buraco nos discursos.


quinta-feira, 2 de maio de 2013

À classe gramatical


O povo, enquanto canta, assobia e sorri, é espancado pela força maior.
O povo, que nem povo sabe que é, é tão pobre que qualquer alegria o enriquece.
O povo, este que há muito se arrasta pelas ruas até o trabalho, ainda não viu o valor de seu suor.
O povo arde em desespero, mas se acalanta com os pequenos gestos, com os pequenos fardos, com os míseros trocados no bolso.
O povo é heroico, mas sua consciência um pó ao vento;
O povo é viril, mas suas forças ainda tendem proutro lado;
O povo é rico, mas nem sabe que tal fortuna se esconde sob seus olhos.
O povo sabe que sua mão transforma.
O povo acredita que em vão não se move e nem é vazia a vida;
O povo sustenta a lembrança e promove a herança enquanto dança na lida.
O povo se satisfaz entre os afetos misericordiosos;
O povo não sente dor, o povo sofrido trabalha com amor.
O povo que tem história não se conta pra si mesmo.
O povo não perde tempo, porque não pode e porque não deve.
O povo e o porco engordam o cercado do dono enquanto o pão da manhã ficará prá amanhã...
O povo ainda elogia o medo.
O povo parece silenciar ante as engrenagens, ante os chiados, ante os trilhos dessa máquina.
O povo não pode morrer.
O povo não seria capaz de dizer “um Não” a si mesmo.
O povo, que unido se tornou o que é, não abaixaria a cabeça por um simples chicote.
O povo promove!
O povo se presta e empresta o que não tem!
O povo que grita recebe da vida o poder de viver!
O povo se tem!
O povo é o todo que sobre si mesmo mantém esse alguém.
O povo é a meta!
O povo é a reta!
O povo é tudo o que se fez e o que se faz!
O povo é a vida do mundo que se diz e que se faz enquanto alguém acredita dizer e fazer.
O povo, que liga os pontos do trilho caminha pralém dos ternos e dos linhos, dos termos e das linhas
O povo é bicho!
O povo é homem!
O povo é a maior parte do mundo que se diz ao próprio mundo!
O povo consome, mas o povo também executa!
O povo escuta, mas também grita!
O povo reproduz, mas o povo também cria!
O povo precisa compreender que executar, gritar e criar devem ser um troféu!
O povo precisa perceber que à frente de si deve estar um novo réu!
O povo precisa entender que os indivíduos doutro lado também são um grupo!
O povo sabendo, percebendo e entendendo renascerá com os olhos prá cima e a cabeça prá si!
O povo, incrivelmente, reviverá o ainda não vivido!
O povo inventará o novo sentido de criação!
O povo agora tem as máquinas e o dinheiro na mão!
O povo é o futuro de si revestido num presente mentido de si!
O povo deixou de ser aquele povo.
O povo é mais que a paz!
O povo é esse jamais batido na cara que se mostra agora orgulhoso!
O povo é generoso em seu próprio sentido!
O povo inventa o sentido porque deixou de estar sentido e em sentido!
O povo agora lidera o prédio porque é ele quem ergueu cada um de seus tijolos!
O povo é o sangue, a lama e o trigo!
O povo é consigo!
O povo é o destino.
O povo é início, o meio e o possível!
O povo foi e continua a ser a maior tecnologia do mundo!
O povo hoje acordou e não preferiu dizer “bom dia”, proclamou:
“O povo!”...
O povo é o dia!”.

domingo, 7 de abril de 2013

Roberta


A existência aparenta ser uma menina.
Se faz dócil quando quer alguma coisa,
Se faz alguma coisa quando quer ser dócil.
Menina levada que não leva a nada.
Atrevida e metida, a existência grita calada.
Suas mãos delicadas disfarçam as palmadas,
E sorri aos garotos como uma grande mulher.
A existência não tem idade,
Mas sei que é mais velha do que nós.
Rude, sarcástica e singela,
Essa menina se esqueceu
Que sua voz madura se revela...
E os colegas que antes tivera
Agora batem a porta à sua cara.
Todos nós fechamos os lábios
Quando ela tirou a máscara.
A menina que antes aqui em casa brincara
Agora dorme sozinha nas calçadas.
A existência quer ser ela de novo,
Mas, enquanto menina,
Sua única verdade será o choro,
Que deixou escapar enquanto brincava de ser o que não era. 

terça-feira, 26 de março de 2013

"Capacita-se um tal singular"


Como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá para dentro?

A saída é necessária, mas não é universal. Conhece-se a luz, o ar puro e o céu azul e calmo. A esta altura os olhos que se vão para trás querem e não querem voltar: Como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?

Lá fora tudo está perfeito. Lá em cima não há mais o descuido de deixar cair a pedra, pois o empurrar e o escorregar da pedra só tem um meio: o descuido. E tendo nós chegado ao harmonioso cuidado das coisas no mundo e de nós, como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?

O ar luminoso que bate na cara do sujeito que se lançou para fora não é o mesmo ar daquele sujeito que respira sombras e tem sede e inveja do nosso ar e da nossa cara que sente o ar luminoso. Lá dentro  é impossível qualquer dizer sem pontuação. Lá dentro, aliás, eles são os pontos. E a tal ponto se pergunta: Como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?

Aqui fora se ouve os gemidos e os arranhões nas paredes que sofrem. Dá para ver o sentido do mundo querendo e não podendo. Dá para ouvir as barrigas e as cabeças vazias solapando a vontade do mundo. Solapando em mínimos resultados... Como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?

Aprende-se, aqui-fora e à luz da vontade do mundo que se tornou nossa amiga, que o apagado daquele leito deitado, que sob traços rasos se contentam com o pó e cegueira natos, não poderia ser mantido nem apropriado como uma condição digna, muito menos como um fato. “É uma escuridão passageira que logo ascenderá, porque a vontade do mundo, talvez, quererá mudar de ideia”. E se a vontade do mundo não quiser mudar de ideia, como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?

Sete vezes perguntado e ainda indignado... Como pode haver um tal singular capaz de querer voltar lá prá dentro?