Do dia em que
as capivaras ficaram famosas não se pensa outra coisa que não seja desfilar.
Bandeira nas costas, e na cabeça nada. Quem não se lembra daquela dos anos
oitenta... “Com muita coisa na cabeça, mas no bolso nada...”. Engraçado é que hoje o oposto é que canta o anúncio de refrigerante. Que inversão! Mesmo que muita coisa na cabeça não seja
exatamente muita coisa na cabeça as capivaras hoje tem dinheiro no bolso; cinco
funcionários para bater o ponto amanhã na loja e: Nada na cabeça, muito menos nada na cabeça...
Por que essas
capivaras conseguiram as câmeras e nós não? Por que “las vasijas cantam y
gritan los hermanos” e nós somos “a minoria arruaceira”? Por que só nós
obedecemos o cercadinho, o chiqueirinho que os capachos do Estado realizam? Quanta ofensa! Todos nós sabemos que o Estado é expressão máxima da liberdade...
Não tivemos
tempo para pintar a cara de amarelinho, nem de verdinho; não pudemos sair mais
cedo do trabalho para comprar uma bandeira de qualidade, que não causasse
alergia em nossas costas bronzeadas e em nossas pernas torneadas - e que combinasse com as calças novas! Não
conseguimos curtir todos os atos porque tínhamos que acordar cedo, e o carnê
chegou aqui em casa, ao contrário do celular cheio de vida e das notícias super
rápidas que o pensamento contemporâneo costuma enviar pela internet...
As capivaras
tiveram tempo: os pais as deixaram em fila dupla em frente da escola; guardaram
o salto no lado do passageiro, colocaram seus tênis confortáveis e foram
protestar alguma coisa nas ruas também. Pagaram para um guri cuidar seus carros três quadras abaixo e foram lá cobrar
“mais dignidade dos políticos” – as capivaras precisam de cuidados! –, pedir “o
fim da corrupção e melhores condições de vida, incluindo melhorias na saúde, educação” e outros elementos que
agora compõem o sexto mistério da
santa “democratização” do mundo...
As capivaras
que conhecem o bom gosto compartilham de bom grado as intenções dos
simpatizantes/aspirantes à classe interessante – que, óbvio, não é classe, mas algo como “modo de vida”,
“filosofia de vida”, “tendência”, etc. Se pudemos apreender alguma coisa do Movimento Fala Aí! diríamos: a melhor
forma de carimbar a ascensão de aspirantes ao modo-interessante-de-vida, aos
donos dos saltos é tirando fotos juntinhos, sem bandeiras-outras e sem
partidos! As fotos dizem por eles – quer dizer, pelo movimento – como uma síntese: “nós somos a nova sociedade”. Antigamente
haveria aplausos, agora são cliques e mais cliques, ecoando na alma virtual tal
slogan...
O suor de
alguns escorria pelos brincos de dezoito e relógios Tissot. O milagre da fusão
dos espíritos acontece em praça pública. Que milagre que nada, processo dialético! E eu que até jurava
que aquilo tudo...
Quando se vê
a massa nas ruas é de arrepiar, não se tem dúvida. Mas quando se atenta os
olhos para mais perto e o arrepio se transforma em um sentimento-de-não-saber o
susto se desmancha; o suor vira água parada; a massa para de crescer... O vocabulário das capivaras tem
o mesmo som de um bocejo: faz “aahhhhh”,
e só. Eu jurava que quando ouvia alguém falar que um gigante acordava era só
uma metáfora... Mas não! O tal gigante estava mesmo dormindo, não se sabe em
qual grau de sono e quando despertou;
nem se gigante sabia que era.
Imaginem só um
gigante de mãos dadas com os policiais, numa quase ciranda de roda (desculpem-me, num movimento de adaptação do espírito) com a cara
toda pintada, com adornos para todo lado, sorrindo e falando ao celular com a
mamãe: “Mamãe! Vem prá cá... Tratam a gente super bem! Você estava certa mamãe,
com respeito a gente consegue tudo!”, e dobrava-se o celular estampado com uma bandeira do Reino Unido.
Lembro também
– agora que estamos mais perto do
hoje – que algumas bandeiras foram compradas bem baratinho: alguns bolivianos
desempregados tanto aqui como lá se saíram muito bem. “Com o dinheiro das
bandeiras brasileiras dá até prá comprar bandeiras bolivianas e sair pras ruas
também!”, disseram eles, seriamente! Nesse ciclo interessante são os argentinos
os mais audaciosos: para acabar com esse movimento bandeirístico-passeático
eles batem panelas! As capivaras são muito criativas... Só depende dos meios de elevação e das próprias representações que O Vale de Lágrimas produz...
E lá, como se
tem mais protestos que Jornal Nacional e menos presidente como sacerdote; mais
militantes do que mílites, as panelas
são recicladas nos próprios movimentos, passadas de pais para filhos, ao
contrário das garrafinhas milagrosas e das revistas das missões, que por aqui
são despejadas, ora gratuita, ora violentamente comercializáveis. Lá, talvez, a
dialética esteja em nível avançado, até porque já é sustentável! Dialética Sustentável: unindo o útil ao conservável. E batem panelas...
Ora, quando
os espíritos alcançam um espelho que nunca haviam cogitado que poderiam nele se
ver, eles se machucam de tanto prazer. Esses espíritos capivaracionais, quando
formam uma imagem para si disso que em si se mostra, gritam agônica e arritmadamente:
a surpresa de ser aquilo que o espelho era em
si produz neles uma “vontade de rua”, uma “energia da voz única”, um
“sentimento de crescimento e prosperidade”. Que tal chamar esse movimento de Fenomenologia capivaracional dos espíritos refletidos?
É certo que
nós somos um país de grandes iniciativas, a começar com a privada! Uma nação onde o espírito presente na sociedade civil realiza muito bem o direito natural. Nós éramos um
país em pleno desenvolvimento, cheio de vontade e planejamento para um
fortalecimento político-econômico... Até que o
gigante, todo enfeitado, começou a bambolear pelas ruas, fazendo gracinha.
Tinha ele que continuar a dormir ou era mesmo hora de acordar? Perguntaram os
inteligentes. Será que ele pode dormir de novo? Perguntam os curiosos... O último desdobramento aponta para esta: "Com ou sem bandeiras desfilantes, é possível frear o meta-movimento que antecede às capivaras, isto é, cobrir o espelho?" Enfim, as energias de um gigante precisam ser repostas com comidas
respeitáveis, bons cremes e sucos naturais! “Da pele até a alma nós pedimos
qualidade!”, disse a representação do gigante...
Que gigante
educado nós somos, aliás! Lembro como se fosse agora que quando ele dançava nas
ruas e tremia muito, colocava as mãos na boca e, tímido, pedia desculpas.
Dizia que ia dançar sem barulho, para não incomodar os vizinhos... E com todos
esses dados e esses doces dá até para pensar se com o
tempo livre que as capivaras tem para pensar sobre qualquer coisa – nos
intervalos do pilates ou no movimento de negação-da-aula-de-francês-na-quarta-feira
– elas não queriam inovar criando uma história de um gigante enfeitado e
educado que fosse pras ruas dançar e fazer bonito. É possível desconfiar que essa história venha
ganhar as prateleiras com um livro de capa verde e amarela; bandeiras prá cima; testas
pintadas; título em caixa alta e muito respeito e coragem no Prefácio, contraditoriamente. Mas todos nós sabemos que o movimento do espírito é por si mesmo contraditório, magnífico...
Bom, é
preferível não mais falar das capivaras, do gigante e de todas as categorias da
Fenomenologia, visto o sentimento de antítese que paira entre (alguns de) nós. Dizem que nem todas as dissertações são
descritivas. Diz-se o mesmo de alguns movimentos
fenomenológicos! Afinal, o que
interessa é que já se divertiram e até ganharam uma “base teórica” – o que as
irritaria! – só para garantir o seu feitio no período das festas junina e
julhina, coincidentemente.
Mas enquanto
o gigante desfaz a maquiagem e põe seu pijaminha verde e amarelo (ele adorou essa roupa!) agora começa
timidamente o movimento consciente do animal-homem: melhor tímido e com certo
sentimento de vingança que espalhafatosamente fazer do processo um espetáculo de circo!
Preocupado
com suas contas e com a carga horária irracional à qual está submetido, o
animal-homem começa a usar seu tempo não para criar “revolução semântica” nem
figurino “mais atual”; não para levantar ninguém adormecido ou bandeira-única-que-não-é-bandeira. Começa
a usar seu tempo, que sabe e sente que nem é seu, para fazer política
anti-ciranda.
Obrigado
animal-homem por colocar o gigante para dormir, mesmo que o sono demore a vir. Afinal, um gigante extenuado
pode causar um acidente horrível se cair por cima das pessoas. Parece que já
era hora de cobrir esse espelho ilusório. Quando cobrir o tal espelho, lembre
de cuidar do menino que cuidou os carros! Ele pode ser pisoteado pelo gigante
enfeitado, que, aliás, só costuma olhar para
suas próprias unhas e adornos, além, é claro, de bem cuidar sua bandeira nova
para que não venha desfiar ou perder a cor. Aliás, usem-na de cobertor, os dias frios são muito mais violentos que antigamente...
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