quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Chuva


“Choveu por aqui um dia desses que o conhecimento é a melhor água.
Foi dito, em Segunda-Chuva, que se não bebermos dela a sede nos conduzirá à sequidão”.
Supostamente entendidos, cada um com o seu pote guardava o máximo que podia do que caía.
Trompando-se alguns se quebravam, outros mais resistentes, barulhavam, mas permaneciam intactos...
O céu nem estava para tanta chuva, talvez por isso que alguns potes eram improvisados...
Do começo, até o final da chuva, mesmo com potes improvisados ou inquebráveis,
E mesmo naquele trompa-trompa típico dos dias de umidade,
Os Seguradores-de-vaso mostravam cara alegre.
Era uma coisa que me intrigava...
Porque na chuva cada um só bebia a água de seu próprio pote...
Não se davam conta que a água que caía, caía do mesmo lugar...
Não se davam conta nem porque caía em tais dias, não noutros...
Só sabiam porque o Vento-inclinador-de-árvores os avisava e a Cor-do-céu não mais era brilho.
O que me intrigava não era nem tanto porque cada um bebia somente a água do seu pote,
Mas por que mostravam cara alegre.
Olhando de cima, parece que sentiam prazer em competir águas que caíam...
Talvez tivessem fé naquilo, talvez nem soubessem por que faziam, talvez fizessem porque algo que não vi mandava...
Contudo, mostravam cara alegre, e aquilo me deixava apreensivo...
Nesse dia, que acompanhei desde o céu em brilho, até o descanso depois do Beber-da-água
Percebi uma coisa:
Depois de um tempo de estiagem prolongada, que fazia secar as gargantas e empoeirar os potes e as caras tristes
No primeiro som de Vento-de-chuva os olhos desesperados salivaram...
Pensei comigo, não fazem por prazer ou por capricho, fazem por extrema necessidade...
Não pude negar que aqueles olhos transbordavam de Querer, um querer Impaciente...
Foi se ofuscando a Cor-do-céu e o Vento-inclinador-de-árvores começou também o seu trabalho.
Desesperadamente os Seguradores-de-potes empunharam seu destino.
E de cabeças baixas e cansadas sentiam os primeiros Pingos-ácidos, próprios do tempo longo sem nenhuma gota d’água...
Beberam da Primeira-chuva ao mesmo tempo em que a poeira dos potes se fazia fundo...
Bebiam conhecimento, diziam, e para eles isso era inegável!
Também, na situação sedenta que corroía!
Tudo bem, para mim, que olhava de cima, além dos Pingos-ácidos e Pó-do-tempo, bebiam desespero...
Claro, como poderiam os Seguradores-de-potes confortavelmente beberem a Segunda-chuva se a sede lhes gritava e os puxava pelas mãos cansadas?!
Beberam da Primeira e se esparramaram pelo chão como num agradecimento... 
E adormeceram.
Na cena ficaram alguns potes quebrados em uma direção, outros que serviram de encosto noutra, outros... Na verdade outros nem pote tinham...
Ensopados e saciados, e com a Segunda-chuva se despedindo sem ser percebida
Levantam do êxtase e com o coro ainda molhado e com o gosto da poeira cravado na esperança respiram cansados, e respiram cansaço...
Deu-se início, de novo, a contagem regressiva para o desespero, o que eles chamam de conhecimento.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Meia vontade


O sol contemporâneo é meio esquisito.
Meio moderno, meio medieval, meio clássico.
Esse sol é mesmo um meio.
É a metade da História que brilha fragmentada.
O sol contemporâneo nasce ao meio-dia
E não se põe mais,
É posto.
O sol contemporâneo brilha a metade,
A outra está ocupada...
Em descobrir se compensa ou não manifestar-se.
E, se compensar, 
Irradiar-se-á toda a felicidade!
E, se compensar, 
Desenvolver-se-á a outra metade!
E, se compensar,
Adorar-se-á a nova verdade.
O sol contemporâneo pode tudo,
Mas prefere o “quase nada” que se dispôs a brilhar.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Sentimento de Sombra


Por muito tempo existe uma árvore no meio da floresta.
Uns dizem que esta árvore é a mãe da natureza,
Outros dizem que é brotada a partir do brilho-do-sol.
Os galhos desta são tortos,
Nem finos nem grossos, são o suficiente para a sombra dos animais.
Suas raízes se apresentam por cima da terra como se quisessem chamar a atenção.
E ela consegue!
Os animais são muito imaginativos!
Basta que a grande árvore balance um dos galhos ou aponte uma das raízes
Para logo acreditarem eles estar ela brincando e acariciando seus gostos e seus olhos,
Tranquilizando...
Acredita-se também, falaram, que esta árvore está apodrecendo,
Que seus galhos estão corroídos a tal ponto de quebrarem com o vento e chuva...
Ainda não se sabe se aguentará o sopro natural esta fortaleza de sombra.
Aliás, sabe-se que dela tiraram mudas e plantaram em vários outros lugares da    floresta,
Porque já pensam no pior, no fim, no tombo...
Os animais, a propósito, muito espertos plantaram logo dez ramas em cada buraco,
Dizem que é pra certificar a “boa nascença”.
Lavram, regam e louvam o broto...
Que grande honra é para eles cultivar aquilo que por eles foi arrancado!
Sentem-se como donos da grande árvore, cuidando de sua geração futura...
“Em pensar que ela nem queria mais que fazer sombra!
Não queria mais que sentir o vento em suas folhas,
Nada mais que pertencer à grande e majestosa natureza reformulante”.
Eles?
Eles nem pararam pra descansar!
Estão afoitos com seus instrumentos nas mãos
Fazendo buracos por todos os lugares...
Sabe o que me parece?
Que o querem eles nada tem a ver com cultivação daquela árvore,
Querem mesmo é deleitarem-se em suas próprias sombras!
Isso faz parte dos seus instintos!
Afinal, eles são muito imaginativos...
Vez ou outra, agora, depois que as pequenas começam a atingir altura de “quase”,
Os animais se lembram da grande mãe.
Aquela sombra, aquele barulho das folhas, aquele tamanho, aquela brincadeira,
Tudo isso, logo estará para cada um.
Enquanto isso, aqueles que acreditam que é nascida pelo brilho-do-sol,
Por chegarem depois do nascimento
Têm o fim da sombra como certeza e naturalidade;
Têm o seco do tronco como ponto (...)
Como ponto de partida para o oferecimento das folhas,
Que, pela demasiada imaginação desses animais,
Servirão de adubo para aquelas arrancadas, crescentes e futuras
Sombras de acolhimento e inspiração.
Parece que, de esquecimento ou de adubo servirá a grande árvore,
Enquanto ela mesma nem em serventia, nem em memória vivia,
Quanto menos dirigia aos múltiplos desejos dos animais
A sua vontade de vida.

sábado, 22 de dezembro de 2012

A estação




A Companhia disse que o homem é um grande processo o qual não se consegue estimar limites.
Do fogo aos ares ele alçou voo e não mais desceu a terra, a não ser para aquecê-la um pouco mais que os seus próprios atributos podem aquecer. Viveu e parece que ainda vive por cima de expectativas, das mais singelas às mais destemidas e largas. Por onde caminha? Pelo grande corredor. A grande passarela histórica desemboca num trecho onde as placas não mais são queimadas pelo sol, muito menos tingidas com as mãos e com pincéis... São agora luminosas, brilhantes e chamativas. São além de meros objetos, passaram a ser “um de nós”. Piscam de acordo com os investimentos de fé nas sinalizações e nas transações a que chegamos.
A última parada, a que estamos esperando o próximo trem passar, pode ter sim um brilho novo, “lâmpadas mais bonitas”, e até mesmo um amigo binário o qual possamos trocar segredos sem sequer sermos alguém! É sobre esta parada – não se sabe mais se podemos chamar de estação – que a vida de muitas pessoas espera algo ou alguém maior que ela. Algo que ainda não tem nome, muito menos sentido e referência, aliás, escutamos o barulho de dúvida vindo pelos trilhos que não mais o são e, nesses gemidos, nesses ganidos que se massificam na estação o máximo que podemos decifrar é um ponto de interrogação desfilando ao nosso redor. Não tem lugar fixo, não significa, não resume e nem existe! Nessa estação, onde as pessoas se comunicam com as almas das outras por um dom incrível, o poder da fala e da mão se esfarelou, e as malas aguardam sentadas e cuidadosamente enfeitadas para ver o ridículo das arrogâncias humanas passarem.
“Foi uma viagem longa sim... Passamos por grandes adaptações”, dizem os viajantes. Já aprendemos a criar e desaprendemos. Já criamos o céu e destruímos a terra. Já choramos por palavras alinhadas em força de um povo e hoje somos sílabas de solidão rodeando frases que não mais se denotam. Somos grandes hoje! Há quem diga isso! Somos interrelacionados! Nunca vivemos tão próximos uns dos outros na história dessa viagem. Nunca nossas malas se sentaram e se acomodaram como se fossem crianças de colo! Nunca tivemos uma liberdade dessas! Dessas que significa ser livre de mim mesmo... Liberdade... Liberdade de comprar coisas! Liberdade de ver lâmpadas acenderem e apagarem! Liberdade de não pensar! Liberdade de um espectador sem expectativas...
Já faz um tempo que meus ouvidos se irritam com tantos chiados e sinais de evolução. A globalização, o nome que deram a esta parada, que ainda esperamos um trem chegar, está tão cheia de corpos desfilantes, tão cheia de desespaços que quando olho para o cinza dos olhos, não sei mais se são dos homens ou dos letreiros. O ruído é tão entediante que a mala que seguro nas mãos vibra como que se pedisse para sair deste lugar, em desespero... É tão engraçado... Criaram o fogo por sobre a terra; criaram a roupa por sobre o corpo; o nojo por sobre os bichos da terra; o trem por sobre os trilhos da firmeza natural e bela; a estação por sobre a astúcia e o dom de criar e... E hoje voam por cima da terra para não sentir o calor do fogo, por cima do tempo para não confundirem a intenção das roupas, por sobre o trem que conduziu o seu destino... E hoje vivem sem lembrar que já tiveram a astúcia e o dom de criar.
São espectadores dos barulhos de algo que nem sabem o nome. E nem o querem saber! Descobriram que as luzes brilham por eles! Descobriram que o poder das palavras se faz mesmo é com a necessidade de se comunicar agora, e somente agora! Não há mais olhares na estação... Não há mais abraço na estação... Não há mais família na estação... Agora o que move os homens-objetos é a vontade de ter. A felicidade dos homens-objetos-e-luminosos é agora um aparato de botões pensantes, uma voz que grita por fios, um olhar que se vê digitalizado... Eis a felicidade dessa parada. Tão diferente das outras, tão mais barulhenta que as outras, tão mais duvidosa que as outras. De todos os lugares do corredor que passamos, não chegamos a presenciar tanto desperdício de essência humana! Tanta desatenção de apreços... Quer dizer, os apreços continuam, mas não o são mais pelo corpo, sim por uma janela brilhosa, por signos representantes, por seres que estão para além dessa ideia velha de homem real... Ouço muito dizer nesta estação que, afeto mesmo, que sentimento mesmo só é possível num estreito isolamento, o qual se conhece muito mais aos outros que a si mesmo e ao corredor.
A impressão que nos dá – e nem sei mais se posso me colocar junto de todos – é que não tem trem algum por vir! A impressão que me dá é que... é que só eu mesmo quem espera por algo que se move pela terra! Só eu mesmo para querer encontrar união de criadores discutindo sobre o papel dos trilhos na escrita dos corredores e das viagens. Só eu mesmo pra acreditar que não acredito em fim da linha... A tão almejada estação está aí. Uma expectativa imensa perdurou por toda a viagem e agora... E agora aqueles que poliam expectativas e decifravam os sinais de esperança não mais estão aqui para, pelo menos, fazer deixar estes de admirar aquilo que nem sabem o que admiram... Pena os expectadores terem virado espectadores. Pena não poder ouvir mais o som da chuva, que se cobre de vergonha e que se vira para não atrapalhar os novos belos ruídos da estação.
   É... a Companhia estava mesmo certa quando disse que o homem é um grande processo, o qual não se consegue estimar limites. Eu vejo essa ilimitação de perto, sentado por sobre suas ideias e me limitando a pensar fantasias, que sequer querem ser processo, muito menos rompedora de limites. Estou certo de que o trem não vai chegar mesmo. É claro, nas telas do novo homem há um meio de passar dessa história para outra em um sopro de vento, quer dizer, em um “toque de tela”. Sobre a plataforma estão convencidos de que não há nada mais importante que ser livre, que usufruir, que comprar, que esquecer... Estão entretidos com o mundo novo. Estão cegos com tanta claridade, estão surdos com tanto barulho. Louco sou eu de pensar que em meio a tanta novidade esmagadora de natureza prefiro cochilar e sonhar que paramos na estação errada, que essa história seja apenas uma história pra eu contar quando chegar em casa.

Se meu coração tivesse poesia


Se meu coração tivesse poesia,
De nada iria pronunciar.
Se minha voz tivesse melodia,
Ela, por capricho, iria desafinar.
Se eu tivesse pelo menos razão naquilo que digo,
Minhas palavras não diriam nada de verdade...
Se meus pés, que são meus pés
Nem andam por onde quero,
Quem dirá minha imaginação flutuar por uma nuvem que nem choveu?
Se meu desejo tivesse nome,
As minhas mãos tratariam logo de batizar,
Mas, e como sempre “mas”...
Se minhas mãos trabalhassem para o bem de minha alma
Que tragédia ocorreria!
Minhas mãos não pegam!
Os meus pés não vão!
A minha alma não se tem,
As palavras se horrorizam com tanta deficiência humana...
Mas...
Se eu fosse um religioso,
Um brilhante de olhos venenosos,
A minha carne seria fresca!
Os meus olhos os mais alimentados!
Meus ouvidos os mais longínquos e precisos!
Ah, se eu fosse um religioso com certeza minhas mãos seriam sagradas,
Meus pés voariam a um infinito cintilante,
Até minha voz gritante seria um conforto e um bom semblante.
Se eu fosse um acreditador de mistérios e segredos
Se tivesse a honra de ver espíritos e espetáculos azuis
Meu tom talvez seria mais agradável e complacente...
Mas... e de novo aquele “mas”...
Se eu fosse desses que brilham no escuro,
Que rezam de joelhos e de joelhos são glorificados
Talvez o meu gosto, o meu corpo, o meu chão
Sentir-se-iam menosprezados...
Talvez o meu choro, o meu arrepio, o meu calafrio
Sentir-se-iam inferiorizados.
Sabe de uma coisa,
Se eu fosse um religioso desses que se trompam como formigas
À procura de alimento,
Eu pararia por um espaço de tempo.
Colocaria os restos no chão, como se faz com as palavras,
E me perguntaria:
O que seria de mim se meu coração tivesse poesia?
O que seria de mim se minha voz tivesse melodia (?)...

O Cientista



Em tempos como este em que a ciência atua como uma espécie de messias, acreditamos fielmente que tanto sua presença, quanto sua vinda constante no cotidiano do mundo tenham um efeito de conforto e oportunidade para o corpo e para a alma. É bem verdade também que se ela atua da forma que atua – digamos, multidimensionalmente – algo lhe propiciou tal capacidade, e reza a História de Versões e versões que o primeiro cientista, diga-se de passagem muito impaciente e bravo, começou essa história de uma forma, no mínimo, inusitada.
Falar sobre este célebre criador é falar de um espetáculo no campo das experimentações. Espetáculo num sentido de que é difícil desviar a atenção de seu trabalho, mesmo que esteja atuando como um arrogante de nariz empinado. Sua vida ora misturada com seus objetos de pesquisa, ora distante e para além deles requer uma exaltação e uma sobreposição diante dos outros cientistas. Aliás, tocar no nome deste além-cientista é tocar até mesmo na consciência das suas cobaias. Seu método e suas atitudes atingiam-nas de uma maneira tão profícua, que de cobaias obedecentes passaram a ser seguidoras de seu experimento, logo, de seu Autoritarismo elequentemente Justo...
Num lugar bem distante, por obviedade de sua antipatia e distancismo, calculava e previa a maioria de suas criações. Maltratava sua consciência ao pensar no limite das palavras e na condição que sua experimentação se mantinha. Ele não entendia o porquê de seu isolamento e de sua nadificação, mas de uma coisa tinha certeza – ou acreditava ter –, que o poder da criação do frio e do fogo era seu, que seus milhares de anos numa escuridão profunda e inspiradora lhe serviriam para uma etapa seguinte: colocar na prática suas fórmulas super-conceituais e se mostrar às cobaias como o grande conquistador, o ídolo do frio e do fogo!
O laboratório quase perfeito deste detentor do conhecimento do mundo funcionava enquanto sua vontade lhe concedia uma oportunidade, e talvez nem ele tenha se dado conta que era secundário em alguns momentos, dependente até mesmo de sua intuição científica e pontual, de seu laboratório, de suas cobaias. De qualquer forma, era um impaciente e um prático das inferências. Gostava de tudo no seu tempo e ao seu tempo, nas suas escolhas, nas suas probabilidades; e ai se algo saísse de forma contrária ou até mesmo diferente de seu ideário! As mudanças de plano o irritavam de tal forma que nem mesmo consciente de que eram próprias de sua indução, criação, lhe faziam confortar. Se algum cientista atual estudasse seu caso de perto – se tivesse tido a chance de observar sua atuação – é possível que  detectasse algum distúrbio de impaciência ou coisa parecida que, infeliz ou felizmente lhe fizeram o mais diferente de todos; e ser o primeiro é até mesmo irrelevante se comparado às suas crises, manias e supra-intuições magníficas.
Conta-se que mesmo tendo conseguido criar o frio e fogo, pois fazia parte de seus planos primeiros, quase se perdeu na sua consciência atormentada. O suicídio o rodeava ao mesmo tempo em que seu trabalho tinha resultados esperados, eis o cientista mais paradoxal de toda existência – e inexistência! Acreditava ele que se alguma cobaia o decepcionasse, seja por uma suspeita de desobediência ou por um passo além do estipulado, uma punição severa deveria ser marcada ou restaurada por cima dessa desatitude dos duvidantes. Enraivecia-se diante da dúvida dos objetos criados por ele mesmo. Atormentava-se diante da liberdade à qual seus experimentos chegaram a ter. Inquietava-se frente à mudança de sua ordem e imposição. Certa vez, num de seus experimentos, ressalvo, o mais polêmico de todos, fez questão de exteriorizar toda sua arrogância, toda sua braveza, toda sua impaciência, toda sua raiva, todas suas manias de poder, todas suas supremacias de cientista louco e egoísta; decidiu, por puro prazer – ou remédio de autodominação – expulsar as cobaias de seu laboratório, maldizendo e empurrando consequências que jamais as coitadas haviam cogitado. Expulsou gritando: “Quero ver agora, desgraçadas, o que vão fazer sem mim!”... “Não sabem decidir por vós mesmos?!”... “Então vão, sigam sozinhos se acham que não precisam de mim! Mas quero ver o que vão sentir diante de um nada misterioso...” E ria com um ódio nos lábios, com uma lágrima na vermilhidão nervosa dos olhos. Explodindo em raiva disse: “Eu não queria fazer isso, mas vocês me provocaram, inúteis! Desobedientes! Não vês que tenho o direito de mandar em vós, criaturas minhas! Só minhas!”... “Sumam daqui! Sumam porque viverão sobre a minha luz e ao mesmo tempo sobre a treva que vós procurastes! Não queríeis?!”, terminou com um riso contido, irônico e sufocante.
Saíram traumatizadas as cobaias. O fogo queimava fora do laboratório com medo do frio, o frio com medo do calor do cientista. As cobaias abaixaram os olhos e até hoje ouvem  aqueles gritos ecoando em suas vidas arrependidas... Tudo se silenciou depois que o cientista decidiu explodir... Instalou-se no ambiente fora do laboratório um medo, que, pela limitação das palavras que o nosso cientista tanto temia, nos permite apenas aproximar a termos como “mal”, “perversidade”, “sofrimento”, “fim”, “desobediência”, “descumprimento de sua ordem”.
Eu dizia no começo que falar sobre este cientista é falar em espetáculo. Mas, é impossível não tocar naquele momento em que seus olhos vermelhos fizeram história na área das criações e das inventividades. É impossível esquecer que por trás daquele tirano louco disfarçado de bonzinho e justo havia o ódio e o vício do apoderamento.
As cobaias hoje convivem com novos cientistas. O fogo e o frio acompanham novos colegas de natureza. Fazem companhia a eles novos objetos de novos criadores, ainda com medo de sua história; ainda com medo de contar essa história a outros cientistas, afinal, estão por muito traumatizados. Não ousam escolher a diferença. Não dão mais um passo além do estabelecido, porque isso pode levar a uma dor tão grande, que mesmo qualquer ideia de mudança e experiência poder-se-á tornar parte de um traumatismo atitudinal, que como regra, tende a silenciar e obedecer. É claro que depois de um início de carreira tão espantoso como esse ele tenha se aperfeiçoado e inventado o rompimento do limite das palavras, do esquecimento da cor de seus olhos e um som que transforma o seu grito passado em melodia para quem entende que ele só queria ajudar. Entretanto, dessa parte misericordiosa do experimento eu prefiro não escrever nada, visto que as cobaias, atordoadas por aquele grito essencial, trabalham e muito para tal reprodução.