Quando as perguntas não são feitas, a peça sempre começa. Mas quando ela começa pela pergunta o espetáculo parece poder chegar ao êxtase.
Ascendem-se as luzes do teatro. O louco
vai pregar sua grande peça.
Sentado numa cadeira simples, no meio
do palco, à meia luz e de pernas e braços cruzados está ele com sua cara séria
e vazia diante dos olhos dos inteligentes. Uma tosse áspera e um pigarro
particulares soam como se dessem início à apresentação. Faz três respirações
profundas, descruza os braços e afeta os olhos do público com astúcia. Levanta
as mãos ao nível de seus olhos e começa a batê-las suavemente, como se fosse
para ser um momento mimético. Os inteligentes, sorrindo, aplaudiram-no com
fervor... Era a primeira vez que ele entrara em um teatro; e que recebera
palmas também.
Os inteligentes saíram de casa
confiantes em um espetáculo inesquecível. O anúncio de uma peça inédita e de
grandes nomes atuantes os fizeram caminhar rumo ao teatro com uma sensação
diferente. Esta não era uma simples peça, ela marcaria a vida de todos os
presentes, e de alguns ausentes que souberam por depois o ocorrido.
Alguns conhecidos inteligentes
conversavam, ainda lá fora, sobre as possibilidades da tal apresentação.
Enquanto três deles alegremente gesticulavam e se tocavam com os dedos e com as
vozes em gargalhadas, pois haviam programado esta noite em reunião, surge um
sujeito estranho. Vestido de forma neutra nas roupas e na cara, olha fixamente
aquele grupo de amigos em roda e os atinge assim:
– “Por quê vestem alegria e tomam esses
gestos como comemoração?”.
Os inteligentes viraram não-ser. O
silêncio lhes corroeu. Afinal, num momento descontraído e propício à harmonia
surge um homem indefinível, com uma pergunta ininteligível, causando no bando
nada menos que um sentimento-de-não-saber.
Ele não esperou a resposta, aliás, ele
não a procurava. Sai lentamente e por muitos despercebido adentra ao teatro.
Depois de um tempo daquele sentimento,
os três amigos voltaram para si. Sem questionamentos, aquilo ficara como um
parêntese aberto e logo fechado, com um vazio duvidoso e seco nele permeado.
O pessoal começa a se adequar às
cadeiras, aos gostos, às manias. Passados trinta minutos os murmúrios começam a
cadenciar. As vozes maiores percebem as menores e sentem vergonha, é onde o
silêncio ganha voz. As últimas risadas seguidas dos últimos pigarros finalizam
os cochichos e chiliques, dando um sinal de início de peça. Apagam-se as luzes,
que só reascenderão depois desta parte, a que conta os bastidores.
A caminho dos arrumatórios e das pinturas de rosto vai o louco murmurando palavras frias e
com dedos inquietos, quando lhe é atacada a sentença:
– “O senhor não pode entrar aí!”.
Seu silêncio respondeu por ele. E
entrou.
Em susto os atores, que se produziam
para tão logo, alvejaram o sujeito como em si uma interrogação. Os olhos do
louco como em si uma exclamação continuaram a conversa deste modo:
– “Pintam a cara para fazer
história ou para contar história?”.
Os olhos artísticos se perguntavam
sobre o sujeito, mas não sobre a pergunta. Mas, mesmo assim, depois de uns
segundos de susto, num ambiente desconfortável e duvidoso o qual tinha se
transformado aquela “sala de pintura”, foi respondida a inquietação do intruso:
– “Senhor, fazemos história também
quando a contamos, aliás, a arte reformula a História quando e porque inventa
linguagens...”.
O louco efetivou-se.
Desde os primeiros anos de
racionalidade os termos benditos, as frases bonitas e em si verdadeiras, as
certezas substanciais o incomodavam... Sua inconformação com a comunicação
sapiencial o atingira há anos, talvez não porque o eram simplesmente úteis, mas
porque lhe vinham como brincadeiras palavrescas e mentirosas, como insulto à
sua louca inteligência.
Desprendeu-se de si, dos atores, das
belas palavras que acabara de ouvir e fechou a porta da sala e da esperança.
Rumou pelo corredor e encontrou seu objetivo: o palco antes da peça.
Não proferiu uma só palavra; com a cara
limpa e sem gestos profissionais é aceso pelas luzes:
“Faz três respirações profundas,
descruza os braços e afeta os olhos do público com astúcia. Levanta as mãos ao
nível de seus olhos e começa a batê-las suavemente, como se fosse para ser um
momento mimético. Os inteligentes, sorrindo, aplaudiram-no com fervor... Era a
primeira vez que ele entrara em um teatro; e que recebera palmas também”.