sexta-feira, 26 de julho de 2013

Quiproquó


Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, disse:
Não disse! Por que deveria dizer algo quando se verte ao céu e para e examina e olha de um canto a outro? Os textos, os discursos bonitos e as emoções vendáveis têm a mania de começar muito mal!
(...)
Ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, fumou um cigarro e cruzou os braços, deveria estar pensando algo do tipo:
Não estava pensando em nada! Por que ele deveria estar pensando algo quando se verte ao céu e para e examina e olha de um canto a outro?

“É que braços cruzados, cigarro e o olhar que se verte pr’o céu geralmente quer expressar pensamento, não é?”.

Quem disse, garoto?

“Não sei quem disse... É que isso é quase como uma regra... O senhor não acha?”

Então façamos um exercício:
Agora você está em frente a um caixão vermelho, com flores roxas e amarelas permeando aquele círculo triste suspenso sobre o tal caixão. Você era o sujeito que se vertia ao céu, parava, examinava e olhava de um canto a outro, quando vem a ser, agora, esse sujeito à frente do caixão. O que diz? Deve estar pensando algo do tipo?

“Eu não sei o que dizer”.
“Por que o caixão?”
“Aliás, por que o caixão vermelho?”.
“Por que diabos o caixão vermelho e um círculo triste suspenso sobre o tal caixão?”.

Deixe eu começar o meu texto de novo...
Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a outro, não disse nada. Mas algo lhe foi dito sem que percebesse.

“Está ótimo!”
“Se não queria dizer nada, então, disse tudo! Você é bom nisso, hein?”

Garoto... És muito ansioso... Tens de começar a apreciar o silêncio; tagarelar é um risco, e todo risco é assumido por aquele que se atropela.

“O senhor fala tão bem! Como não consegue começar um texto?”

Garoto... Não ouviu nenhuma palavra que disse, não? Um texto, um discurso, uma ideia nunca começam por alguém, por um indivíduo, por um. Um texto se começa por uma personagem, uma personagem incognoscível e sabida de si.

“Não sei se entendo...”

Não consegui começar o texto porque ainda não me veio tal personagem!

“Ahhh... Não acredito! Esta é a essência da inspiração???”.

(...)

Ele não se verteu ao céu, não parou, não examinou nada, nem mesmo olhou de um canto a outro. Ele não sabia que sentimento tinha sido aquele. A escuridão talvez o ocorreu no espírito. Sentia-se racionalmente como impensado; mergulhado nas suas honras particulares por um espaço de tempo que não sabia decifrar.

“Agora sim, hein! Agora começou! Perfeito!”
“Como é a personagem, ela veio pr’o senhor?”

Garoto, por que não levantou a tampa do caixão quando estava de frente a ele?

(...)

“Por que não pensei isso antes...”

Porque não pensou em nada! Estava vertido ao céu, parado, examinando e olhando de um canto a outro!

“Mas o senhor me disse que não é obrigatório dizer algo, nem mesmo pensar em algo!”
“E se eu levantasse a tampa o senhor ia mandar eu fechar! Tenho certeza!”

Ahahahaha... Garoto... Não podemos brigar com as coisas formadas da ilusão; elas é que brigam entre si para ganharem o mundo e se confundirem com a realidade. Elas são traiçoeiras, são engenhosas e ao mesmo tempo pusilânimes.
Nos tempos em que o pensamento se verte ao céu, por exemplo, e para, e examina e “olha de um canto a outro” o silêncio ocorre como uma personagem destemida. Incognoscível, mas destemida. Nesses tempos, o pensamento consegue domar as coisas da ilusão, de modo que a escuridão não mais ocorre no espírito, mas na própria ilusão. Cruza os braços e fuma um cigarro, é isso que faz realidade quando essas coisas pedem pra chegar.
De um caixão vermelho emergem então os textos, os círculos de flores roxas e amarelas. A vida é então representada quando se verte ao céu e quando o céu nos olha de um canto a outro. Quando os braços cruzados dizem o que não sabemos dizer, ou quando nós enquanto personagens viemos a nós mesmos como inspiração de si, é aí então que começa...

“Eu acho que já sei o começo do texto do senhor...”

(...)

Se sabe mesmo, então quem é aquele de braços cruzados?

“Ele não existe... Nem o caixão...”
“Nem as flores, nem o céu, nem a personagem, nem nada!”

“Por que me enganou?”
“Quem disse que prá começar texto tem que enganar alguém?”

(...)

“Deixei de acreditar nas palavras daquele senhor que se vertia ao céu, mentiroso! Suas palavras eram carregadas de paradas, exames de um canto a outro, mas todas mentirosas! Coloquei-as dentro do caixão e despedacei todas as flores! Não é possível que alguém não pense em nada quando se verte ao céu! Por que não dizer nada?! Só se for porque é mentira! E se for prá dizer mentira é melhor mesmo cultuar o silêncio! (...) Coisas da ilusão... Escuridão no espírito... E eu achando que ele queria começar um texto! Mentiroso!”
“Vou deixar o senhor em silêncio, talvez consiga alguma ‘inspiração’”

Garoto, algo lhe foi dito sem que percebesse...

“O senhor não disse nada!”.