Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um
canto a outro, disse:
Não disse! Por que deveria dizer algo quando se verte ao céu
e para e examina e olha de um canto a outro? Os textos, os discursos bonitos e
as emoções vendáveis têm a mania de começar muito mal!
(...)
Ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um canto a
outro, fumou um cigarro e cruzou os braços, deveria estar pensando algo do
tipo:
Não estava pensando em nada! Por que ele deveria estar pensando
algo quando se verte ao céu e para e examina e olha de um canto a outro?
“É que braços cruzados, cigarro e o olhar que se verte pr’o
céu geralmente quer expressar pensamento,
não é?”.
Quem disse, garoto?
“Não sei quem disse... É que isso é quase como uma regra... O senhor não acha?”
Então façamos um exercício:
Agora você está em frente a um caixão vermelho, com flores
roxas e amarelas permeando aquele círculo triste suspenso sobre o tal caixão.
Você era o sujeito que se vertia ao céu, parava, examinava e olhava de um canto
a outro, quando vem a ser, agora, esse sujeito à frente do caixão. O que diz? Deve estar pensando algo do tipo?
“Eu não sei o que dizer”.
“Por que o caixão?”
“Aliás, por que o caixão vermelho?”.
“Por que diabos o caixão vermelho e um círculo triste
suspenso sobre o tal caixão?”.
Deixe eu começar o meu texto de novo...
Quando ele se verteu ao céu, parou, examinou, olhou de um
canto a outro, não disse nada. Mas algo lhe foi dito sem que percebesse.
“Está ótimo!”
“Se não queria dizer nada, então, disse tudo! Você é bom nisso, hein?”
Garoto... És muito ansioso... Tens de começar a apreciar o
silêncio; tagarelar é um risco, e todo risco é assumido por aquele que se
atropela.
“O senhor fala tão bem! Como não consegue começar um texto?”
Garoto... Não ouviu nenhuma palavra que disse, não? Um texto,
um discurso, uma ideia nunca começam por alguém, por um indivíduo, por um. Um texto se começa por uma
personagem, uma personagem incognoscível e sabida de si.
“Não sei se entendo...”
Não consegui começar o texto porque ainda não me veio tal
personagem!
“Ahhh... Não acredito! Esta é a essência da inspiração???”.
(...)
Ele não se verteu ao céu, não parou, não examinou nada, nem
mesmo olhou de um canto a outro. Ele não sabia que sentimento tinha sido aquele. A
escuridão talvez o ocorreu no espírito. Sentia-se racionalmente como impensado;
mergulhado nas suas honras particulares por um espaço de tempo que não sabia
decifrar.
“Agora sim, hein! Agora começou! Perfeito!”
“Como é a personagem, ela veio pr’o senhor?”
Garoto, por que não levantou a tampa do caixão quando estava
de frente a ele?
(...)
“Por que não pensei isso antes...”
Porque não pensou em nada! Estava vertido ao céu, parado, examinando
e olhando de um canto a outro!
“Mas o senhor me disse que não é obrigatório dizer algo, nem
mesmo pensar em algo!”
“E se eu levantasse a tampa o senhor ia mandar eu fechar!
Tenho certeza!”
Ahahahaha... Garoto... Não podemos brigar com as coisas
formadas da ilusão; elas é que brigam entre si para ganharem o mundo e se
confundirem com a realidade. Elas são traiçoeiras, são engenhosas e ao mesmo tempo
pusilânimes.
Nos tempos em que o pensamento se verte ao céu, por exemplo,
e para, e examina e “olha de um canto a outro” o silêncio ocorre como uma
personagem destemida. Incognoscível, mas destemida. Nesses tempos, o pensamento
consegue domar as coisas da ilusão, de modo que a escuridão não mais ocorre no
espírito, mas na própria ilusão. Cruza os braços e fuma um cigarro, é isso que
faz realidade quando essas coisas pedem pra chegar.
De um caixão vermelho emergem então os textos, os círculos de
flores roxas e amarelas. A vida é então representada quando se verte ao céu e
quando o céu nos olha de um canto a outro. Quando os braços cruzados dizem o
que não sabemos dizer, ou quando nós enquanto personagens viemos a nós mesmos
como inspiração de si, é aí então que começa...
“Eu acho que já sei o começo do texto do senhor...”
(...)
Se sabe mesmo, então quem é aquele de braços cruzados?
“Ele não existe... Nem
o caixão...”
“Nem as flores, nem o céu, nem a personagem, nem nada!”
“Por que me enganou?”
“Quem disse que prá começar texto tem que enganar alguém?”
(...)
“Deixei de acreditar nas palavras daquele senhor que se
vertia ao céu, mentiroso! Suas palavras eram carregadas de paradas, exames de
um canto a outro, mas todas mentirosas! Coloquei-as dentro do caixão e despedacei
todas as flores! Não é possível que alguém não pense em nada quando se verte ao
céu! Por que não dizer nada?! Só se for porque é mentira! E se for prá dizer
mentira é melhor mesmo cultuar o silêncio! (...) Coisas da ilusão... Escuridão
no espírito... E eu achando que ele queria começar um texto! Mentiroso!”
“Vou deixar o senhor em silêncio, talvez consiga alguma ‘inspiração’”
Garoto, algo lhe foi
dito sem que percebesse...
“O senhor não disse nada!”.