sábado, 22 de dezembro de 2012

O Cientista



Em tempos como este em que a ciência atua como uma espécie de messias, acreditamos fielmente que tanto sua presença, quanto sua vinda constante no cotidiano do mundo tenham um efeito de conforto e oportunidade para o corpo e para a alma. É bem verdade também que se ela atua da forma que atua – digamos, multidimensionalmente – algo lhe propiciou tal capacidade, e reza a História de Versões e versões que o primeiro cientista, diga-se de passagem muito impaciente e bravo, começou essa história de uma forma, no mínimo, inusitada.
Falar sobre este célebre criador é falar de um espetáculo no campo das experimentações. Espetáculo num sentido de que é difícil desviar a atenção de seu trabalho, mesmo que esteja atuando como um arrogante de nariz empinado. Sua vida ora misturada com seus objetos de pesquisa, ora distante e para além deles requer uma exaltação e uma sobreposição diante dos outros cientistas. Aliás, tocar no nome deste além-cientista é tocar até mesmo na consciência das suas cobaias. Seu método e suas atitudes atingiam-nas de uma maneira tão profícua, que de cobaias obedecentes passaram a ser seguidoras de seu experimento, logo, de seu Autoritarismo elequentemente Justo...
Num lugar bem distante, por obviedade de sua antipatia e distancismo, calculava e previa a maioria de suas criações. Maltratava sua consciência ao pensar no limite das palavras e na condição que sua experimentação se mantinha. Ele não entendia o porquê de seu isolamento e de sua nadificação, mas de uma coisa tinha certeza – ou acreditava ter –, que o poder da criação do frio e do fogo era seu, que seus milhares de anos numa escuridão profunda e inspiradora lhe serviriam para uma etapa seguinte: colocar na prática suas fórmulas super-conceituais e se mostrar às cobaias como o grande conquistador, o ídolo do frio e do fogo!
O laboratório quase perfeito deste detentor do conhecimento do mundo funcionava enquanto sua vontade lhe concedia uma oportunidade, e talvez nem ele tenha se dado conta que era secundário em alguns momentos, dependente até mesmo de sua intuição científica e pontual, de seu laboratório, de suas cobaias. De qualquer forma, era um impaciente e um prático das inferências. Gostava de tudo no seu tempo e ao seu tempo, nas suas escolhas, nas suas probabilidades; e ai se algo saísse de forma contrária ou até mesmo diferente de seu ideário! As mudanças de plano o irritavam de tal forma que nem mesmo consciente de que eram próprias de sua indução, criação, lhe faziam confortar. Se algum cientista atual estudasse seu caso de perto – se tivesse tido a chance de observar sua atuação – é possível que  detectasse algum distúrbio de impaciência ou coisa parecida que, infeliz ou felizmente lhe fizeram o mais diferente de todos; e ser o primeiro é até mesmo irrelevante se comparado às suas crises, manias e supra-intuições magníficas.
Conta-se que mesmo tendo conseguido criar o frio e fogo, pois fazia parte de seus planos primeiros, quase se perdeu na sua consciência atormentada. O suicídio o rodeava ao mesmo tempo em que seu trabalho tinha resultados esperados, eis o cientista mais paradoxal de toda existência – e inexistência! Acreditava ele que se alguma cobaia o decepcionasse, seja por uma suspeita de desobediência ou por um passo além do estipulado, uma punição severa deveria ser marcada ou restaurada por cima dessa desatitude dos duvidantes. Enraivecia-se diante da dúvida dos objetos criados por ele mesmo. Atormentava-se diante da liberdade à qual seus experimentos chegaram a ter. Inquietava-se frente à mudança de sua ordem e imposição. Certa vez, num de seus experimentos, ressalvo, o mais polêmico de todos, fez questão de exteriorizar toda sua arrogância, toda sua braveza, toda sua impaciência, toda sua raiva, todas suas manias de poder, todas suas supremacias de cientista louco e egoísta; decidiu, por puro prazer – ou remédio de autodominação – expulsar as cobaias de seu laboratório, maldizendo e empurrando consequências que jamais as coitadas haviam cogitado. Expulsou gritando: “Quero ver agora, desgraçadas, o que vão fazer sem mim!”... “Não sabem decidir por vós mesmos?!”... “Então vão, sigam sozinhos se acham que não precisam de mim! Mas quero ver o que vão sentir diante de um nada misterioso...” E ria com um ódio nos lábios, com uma lágrima na vermilhidão nervosa dos olhos. Explodindo em raiva disse: “Eu não queria fazer isso, mas vocês me provocaram, inúteis! Desobedientes! Não vês que tenho o direito de mandar em vós, criaturas minhas! Só minhas!”... “Sumam daqui! Sumam porque viverão sobre a minha luz e ao mesmo tempo sobre a treva que vós procurastes! Não queríeis?!”, terminou com um riso contido, irônico e sufocante.
Saíram traumatizadas as cobaias. O fogo queimava fora do laboratório com medo do frio, o frio com medo do calor do cientista. As cobaias abaixaram os olhos e até hoje ouvem  aqueles gritos ecoando em suas vidas arrependidas... Tudo se silenciou depois que o cientista decidiu explodir... Instalou-se no ambiente fora do laboratório um medo, que, pela limitação das palavras que o nosso cientista tanto temia, nos permite apenas aproximar a termos como “mal”, “perversidade”, “sofrimento”, “fim”, “desobediência”, “descumprimento de sua ordem”.
Eu dizia no começo que falar sobre este cientista é falar em espetáculo. Mas, é impossível não tocar naquele momento em que seus olhos vermelhos fizeram história na área das criações e das inventividades. É impossível esquecer que por trás daquele tirano louco disfarçado de bonzinho e justo havia o ódio e o vício do apoderamento.
As cobaias hoje convivem com novos cientistas. O fogo e o frio acompanham novos colegas de natureza. Fazem companhia a eles novos objetos de novos criadores, ainda com medo de sua história; ainda com medo de contar essa história a outros cientistas, afinal, estão por muito traumatizados. Não ousam escolher a diferença. Não dão mais um passo além do estabelecido, porque isso pode levar a uma dor tão grande, que mesmo qualquer ideia de mudança e experiência poder-se-á tornar parte de um traumatismo atitudinal, que como regra, tende a silenciar e obedecer. É claro que depois de um início de carreira tão espantoso como esse ele tenha se aperfeiçoado e inventado o rompimento do limite das palavras, do esquecimento da cor de seus olhos e um som que transforma o seu grito passado em melodia para quem entende que ele só queria ajudar. Entretanto, dessa parte misericordiosa do experimento eu prefiro não escrever nada, visto que as cobaias, atordoadas por aquele grito essencial, trabalham e muito para tal reprodução.        

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