Em tempos
como este em que a ciência atua como uma espécie de messias, acreditamos
fielmente que tanto sua presença, quanto sua vinda constante no cotidiano do mundo tenham um efeito de conforto e oportunidade para o corpo e para a alma. É bem
verdade também que se ela atua da forma que atua – digamos, multidimensionalmente –
algo lhe propiciou tal capacidade, e reza a História de Versões e versões que o
primeiro cientista, diga-se de passagem muito impaciente e bravo, começou essa história de uma forma, no mínimo, inusitada.
Falar sobre
este célebre criador é falar de um espetáculo no campo das experimentações. Espetáculo
num sentido de que é difícil desviar a atenção de seu trabalho, mesmo que
esteja atuando como um arrogante de nariz empinado. Sua vida ora misturada com
seus objetos de pesquisa, ora distante e para além deles requer uma exaltação e
uma sobreposição diante dos outros cientistas. Aliás, tocar no nome deste além-cientista
é tocar até mesmo na consciência das suas cobaias. Seu método e suas atitudes
atingiam-nas de uma maneira tão profícua, que de cobaias obedecentes passaram
a ser seguidoras de seu experimento, logo, de seu Autoritarismo elequentemente Justo...
Num lugar bem
distante, por obviedade de sua antipatia e distancismo, calculava e previa a
maioria de suas criações. Maltratava sua consciência ao pensar no limite das
palavras e na condição que sua experimentação se mantinha. Ele não entendia o porquê
de seu isolamento e de sua nadificação, mas de uma coisa tinha certeza – ou
acreditava ter –, que o poder da criação do frio e do fogo era seu, que
seus milhares de anos numa escuridão profunda e inspiradora lhe serviriam para
uma etapa seguinte: colocar na prática suas fórmulas super-conceituais e se
mostrar às cobaias como o grande conquistador, o ídolo do frio e do fogo!
O laboratório
quase perfeito deste detentor do conhecimento do mundo funcionava enquanto sua
vontade lhe concedia uma oportunidade, e talvez nem ele tenha se dado conta que
era secundário em alguns momentos, dependente até mesmo de sua intuição
científica e pontual, de seu laboratório, de suas cobaias. De qualquer forma,
era um impaciente e um prático das inferências. Gostava de tudo no seu tempo e ao seu tempo,
nas suas escolhas, nas suas probabilidades; e ai se algo saísse de forma
contrária ou até mesmo diferente de seu ideário! As mudanças de plano o
irritavam de tal forma que nem mesmo consciente de que eram próprias de sua
indução, criação, lhe faziam confortar. Se algum cientista atual estudasse seu
caso de perto – se tivesse tido a chance de observar sua atuação – é possível
que detectasse algum distúrbio de
impaciência ou coisa parecida que, infeliz ou felizmente lhe fizeram o mais
diferente de todos; e ser o primeiro é até mesmo irrelevante se comparado às
suas crises, manias e supra-intuições magníficas.
Conta-se que
mesmo tendo conseguido criar o frio e fogo, pois fazia parte de seus planos
primeiros, quase se perdeu na sua consciência atormentada. O suicídio o rodeava
ao mesmo tempo em que seu trabalho tinha resultados esperados, eis o cientista
mais paradoxal de toda existência – e inexistência! Acreditava ele que se
alguma cobaia o decepcionasse, seja por uma suspeita de desobediência ou por um
passo além do estipulado, uma punição severa deveria ser marcada ou restaurada
por cima dessa desatitude dos duvidantes. Enraivecia-se diante da dúvida dos
objetos criados por ele mesmo. Atormentava-se diante da liberdade à qual seus
experimentos chegaram a ter. Inquietava-se frente à mudança de sua ordem e
imposição. Certa vez, num de seus experimentos, ressalvo, o mais polêmico de
todos, fez questão de exteriorizar toda sua arrogância, toda sua braveza, toda
sua impaciência, toda sua raiva, todas suas manias de poder, todas suas
supremacias de cientista louco e egoísta; decidiu, por puro prazer – ou remédio
de autodominação – expulsar as cobaias de seu laboratório, maldizendo e
empurrando consequências que jamais as coitadas haviam cogitado. Expulsou
gritando: “Quero ver agora, desgraçadas, o que vão fazer sem mim!”... “Não
sabem decidir por vós mesmos?!”... “Então vão, sigam sozinhos se acham que não
precisam de mim! Mas quero ver o que vão sentir diante de um nada
misterioso...” E ria com um ódio nos lábios, com uma lágrima na vermilhidão
nervosa dos olhos. Explodindo em raiva disse: “Eu não queria fazer isso, mas
vocês me provocaram, inúteis! Desobedientes! Não vês que tenho o direito
de mandar em vós, criaturas minhas! Só minhas!”... “Sumam daqui! Sumam porque
viverão sobre a minha luz e ao mesmo tempo sobre a treva que vós procurastes!
Não queríeis?!”, terminou com um riso contido, irônico e sufocante.
Saíram
traumatizadas as cobaias. O fogo queimava fora do laboratório com medo do frio,
o frio com medo do calor do cientista. As cobaias abaixaram os olhos e até hoje
ouvem aqueles gritos ecoando em suas
vidas arrependidas... Tudo se silenciou depois que o cientista decidiu
explodir... Instalou-se no ambiente fora do laboratório um medo, que, pela
limitação das palavras que o nosso cientista tanto temia, nos permite apenas
aproximar a termos como “mal”, “perversidade”, “sofrimento”, “fim”,
“desobediência”, “descumprimento de sua ordem”.
Eu dizia no
começo que falar sobre este cientista é falar em espetáculo. Mas, é impossível
não tocar naquele momento em que seus olhos vermelhos fizeram história na área
das criações e das inventividades. É impossível esquecer que por trás daquele
tirano louco disfarçado de bonzinho e justo havia o ódio e o vício do
apoderamento.
As cobaias
hoje convivem com novos cientistas. O fogo e o frio acompanham novos colegas de
natureza. Fazem companhia a eles novos objetos de novos criadores, ainda com
medo de sua história; ainda com medo de contar essa história a outros
cientistas, afinal, estão por muito traumatizados. Não ousam escolher a diferença.
Não dão mais um passo além do estabelecido, porque isso pode levar a uma dor
tão grande, que mesmo qualquer ideia de mudança e experiência poder-se-á tornar
parte de um traumatismo atitudinal, que como regra, tende a silenciar e
obedecer. É claro que depois de um início de carreira tão espantoso como esse
ele tenha se aperfeiçoado e inventado o rompimento do limite das palavras, do
esquecimento da cor de seus olhos e um som que transforma o seu grito passado
em melodia para quem entende que ele só queria
ajudar. Entretanto, dessa parte misericordiosa do experimento eu prefiro não escrever
nada, visto que as cobaias, atordoadas por aquele grito essencial, trabalham e muito para tal reprodução.
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