terça-feira, 14 de maio de 2013

Buraco nos Discursos


Daqui de cima dá para ouvir a confusão, onde dois velhos amigos paravam o jogo para atuar em um novo passatempo:

– Veja o de azul, parece poeta, mas rima gestos com ideias! Dizia o senhor Artur.

Lá em baixo a briga palavresca acirrava o diálogo entre os dois pensadores do bairro, o senhor Eliseu e o jovem Carlos. As palavras soavam assim:

“Nós defendemos a supressão de toda forma de poder!”.

Um dos amigos, que guardava as cartas do Buraco e centrava-se na conversa ria muito... Entre os risos ele se incomodava:

– Esse é o poder que vocês exercem no mundo? Perguntava invocando o amigo ao lado, em risos.

Ali de cima eles já haviam guardado o jogo várias vezes. Uma vez numa discussão entre uma questão de um além-do-homem e outras fantasias filosóficas; outra, se não me falha a imaginação, num embate sobre o mal moral e o mal metafísico. De qualquer modo, eles se divertiam muito, aliás, as conversas permitiam tal diversão, e uma pausa no jogo parecia sempre necessária quando um assunto polêmico vinha à tona...

– Veja, Frederico, aquele não é o jovem Carlos, filho do advogado da esquina? Pergunta Artur, enquanto ouvia as palavras e as ironias do jovem:

“Vocês dizem que são contra toda e qualquer forma de poder, mas acabam se esquecendo que não existirá liberdade sem o poder individual de um sobre o outro!”.
“Dizem por todos os cantos: ‘nós defendemos o pensamento livre do indivíduo!’. E enchem a boca ao dizerem também: ‘nós somos os libertários’!”. Quanta bobagem, não percebem que anterior ao indivíduo está presente o meio onde é constituído?

Eliseu não se contenta com as implicações... Aliás, ele nunca se contenta com implicações:

“Você não entende bem, amigo Carlos. O meio, a natureza, que aliás, única acima de nós é quem nos oferece as condições reais de liberdade e progresso. Somos libertários, sim, porque estamos para além dos conceitos prontos que de nada revelam sobre as leis da natureza; pelo contrário, nos invadem e nos corrompe! Somos libertários, sim, porque vivemos pelo livre acordo dos quereres que há de constituir a sociedade futura! Assim como já constituiu muitas!”.

A conversa esquentava e um dos jogadores de cartas já analisava a feição daquele de camisa vermelha, o filho do advogado. Enquanto acendia um cigarro, via o tal Carlos preparando a réplica. E não demorou três segundos para que o tal jovem assim replicasse:

“Sabe por que às vezes fico triste, caro Eliseu? Que vocês, nem sei do que chamo mais, idealizaram a natureza a tal ponto de não perceberem que até mesmo ela pertence a alguém! Vocês dizem lindas palavras sobre a ‘potencialidade do indivíduo’, a ‘capacidade pessoal’ e sobre o ‘sonho de liberdade mundial’. Mas... quem é o indivíduo numa operação de forças conjugadas e precisas? O que significa a ‘capacidade pessoal’ ou a ‘individualidade’ num plano fortemente montado e consolidado que pisoteia qualquer ‘vontade’ ou ‘querer’ pessoal? Responda-me, caro amigo Eliseu, esse ‘sonho de liberdade mundial’ ainda não se compara a um paraíso qualquer que, harmoniosamente, possibilitaria a realização plena da vida entre ‘irmãos’, como nós vimos naquele outro conto de fadas?”.

O senhor Frederico, aquele das cartas e dos risos, cutuca o amigo e desabafa:

– Mas não é o tal Carlos também um idealizador do mundo, Artur? Por que diabos eles estão discutindo?

– O problema é o poder, Frederico... Diz o amigo, balançando a cabeça e desfazendo-se das cinzas do cigarro:

– O modo como eles entendem o poder nunca vai ser conciliável... Não vê o nosso jogo? Um lixeiro e um jogador limpo, uma briga sem fim! E gargalharam os dois...

A liberdade era o tema do jogo de buraco e do bate-boca lá em baixo. Afinal, o poder estava com o de azul ou com o de vermelho? Com o lixeiro ou com o jogador limpo? Isto ainda não se sabe, mas Eliseu já preparava o tão famoso argumento anti-poder:

“Ora, camarada Carlos, vamos encurtar a conversa, porque o caminho para casa nunca é só um caminho... Vocês não querem a tomada de poder e a consolidação de uma sociedade sem classes?”

Carlos levantara a sobrancelha como resposta, num tom sério e afirmativo. Aliás, poucos vizinhos se atentavam aos gestos do jovem Carlos... Eles sempre diziam mais que suas palavras... Contudo, depois da afirmação silenciosa do jovem, assim continuou Eliseu: 

“Então, nós entendemos que tomar o poder significa continuar o ciclo vicioso da ‘autoridade sagrada’, a famosa hierarquia, senhor Carlos! Ora, veja bem, nem mesmo uma ‘conscientização’ está fora desse jogo ingênuo; nem mesmo uma ‘ditadura do sofredor’, que você tanto almeja conseguiria recompor um plano harmônico entre os indivíduos, pois, onde estariam nesse ‘momento’ os outros subjugados? Ah! ‘não existiriam mais!’. Camarada Carlos, sinto dizer, mas, não acha um tanto infantil conceber uma inversão totalizante e depois querer fazer sumir do mapa a própria força da inversão?”

O senhor Artur, agora intrigado, cotovelava o amigo Frederico:

– Não é que o tal Eliseu tem razão naquilo que diz!

Frederico, não muito crente na razão, dava seu palpite, enquanto colocava a mão na testa, como se quisesse tocar a consciência de Artur...

– Artur, velho amigo... Ainda busca razão nos discursos? Ainda acredita que exista uma “racionalidade histórica” e “confortável” para “o homem”? Veja, a conversa vai girar e girar e a vontade ficará em segundo plano; tentarão se justificar pela consciência e, sabe o que acontecerá? Assim como você vive tentando ganhar no Buraco de mim só com jogos limpos e sequências bem pensadas, ficarão eles, mais uma vez, decepcionados por perderem de um lixeiro, astuto e inconveniente! Ahahahaha... Eles deveriam parar de jogar limpo! Isso não dá em nada! Quem disse que o mundo tem alguma razão? Aliás, se alguém o disse, o disse por covardia! E finalizava rindo por dentro...

Artur ficara encurralado. Olhando para seu leque de limpas sequências incompletas ele teve de concordar com Frederico: descobriu porque perdia tanto.

Lá em baixo a conversa dura mais de dois séculos. O filho do advogado se torna o pai da História. O senhor Eliseu ainda busca a tão almejada liberdade irrestrita. Artur e Frederico, tão contrários quanto parecidos no jogo da vida, continuam sentados nos variados bancos da praça. A quem interessa esse jogo? Quem garante o discurso? Quem vai bater?

Metido a pensar naquilo que não vi, quando olhei para baixo de novo só ouvi murmúrios, só vi vultos... Quando olhei para baixo de novo, não ouvi mais nenhuma conversa entre o senhor Artur e seu amigo Frederico. Quando olhei para baixo, Carlos já não era jovem; Eliseu um marco. O jogo já tinha se deixado, assim como o sonho da liberdade e o buraco nos discursos.


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